sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Aniversário




Sou conhecida como Vovó Zenaia e hoje é meu aniversário. Estou completando 90 anos de idade. Esta noite meus familiares comemorarão a data com uma festa reunindo até parentes distantes. Acho que estão cientes que não devo durar muitos anos mais.
É difícil chegar aos 90 anos. Acho que de certa forma sou privilegiada. Tenho minhas faculdades mentais em boas condições, apesar da idade. Busco exercitar sempre minha mente de forma a mantê-la alerta. Mulher à frente de meu tempo, estudei muito, fui professora, sempre gostei de ler e continuo com meus hábitos. Ainda assim, muitas vezes sinto dificuldade ao tentar lembrar-me de fatos acontecidos durante o dia, ou ainda de comunicar-me. Temo que a situação esteja piorando a cada dia.
Noventa anos também é difícil para o corpo. Canso com facilidade, tenho dores nas juntas com frequência, uso aparelho auditivo e já tive de submeter-me a cirurgia de catarata. Minhas mãos são trêmulas, os ossos frágeis e a pele tão fina que se corta com facilidade.
Doi muito a reação das outras pessoas quando me vêem. Parece que a sociedade, ao tentar valorizar a terceira idade, nos reduziu à situação de bebês. Perco a conta de quantas vezes por dia escuto mulheres emotivas dizerem na rua “Nossa, que gracinha de velhinha!”, ou ainda, ao conversarem comigo, usarem tons infantis, como ao tentar explicar algo complicado a uma criança.
E quanto a esta valorização da terceira idade, não tenho certeza de que existe de verdade. A sensação que tenho é de que as pessoas jovens apenas nos toleram por ser este o comportamento considerado correto nos dias de hoje. Não há uma inclusão real no mundo. A cada aniversário ficamos mais e mais à margem da sociedade e mesmo das decisões que influenciam os rumos da humanidade. Faz sentido. Em breve não estaremos mais aqui, então por que teriamos vez, não é mesmo?
Mas acredito que minha vaidade é o que mais sofre com a idade. Olho-me no espelho e não me reconheço em nada do que vejo. Ao longo dos anos acompanhei o surgimento de cada ruga, cada cabelo branco, mas hoje choca ver-me assim: encurvada, a cabeça coberta por finos e ralos cabelos brancos, os olhos desbotados...
Eu era bela, cobiçada pelos homens. Tive muitos admiradores, casei-me duas vezes. Meus cabelos eram impecáveis, a pele uma seda, as roupas sempre na última moda. E agora não há sequer quem se lembre daquela época. Para todos os que me cercam eu sou e sempre serei Vovó Zenaia.
Ninguém me conhece. Não sabem dos sonhos que tive e nunca pude realizar, não sabem das aventuras que vivi, dos segredos que guardei, das dores que sofri, dos amores que perdi, das amizades que sumiram no tempo.
Não sou mais mulher, sou velha. A senhorinha idosa que mora no fim da rua. Ficariam todos horrorizados se soubesse que eu, ao assistir à novela, também acho bonito aquele protagonista moreno, jovem e forte, e muitas vezes surpreendo-me, imaginando como seria um beijo daquela boca.
Beijos... Há tantos anos não sei mais o que é beijar, ser tocada e amada por um homem. Com a idade nos tornamos espectadores da vida, não mais participamos dela. Dia após dia se torna como mais uma página de um epílogo entediante e interminável.
Sou a última entre os de minha época. Meus amigos de infância, colegas de escola, trabalho, ou já morreram ou o tempo os levou para longe. De muitos nem lembro mais o nome. Vejo-me às vezes confundindo, juntando em uma pessoas características de dois velhos amigos de tempos diferentes. É a memória que desbota.
Agora estou aqui, sentada no banco da praça tomando um pouco do sol das 16 horas. Sei que dentro de pouco tempo minha neta virá me procurar, para saber o que estou “aprontando”, e mandar-me para o banho, pois os convidados logo começarão a chegar. É a regressão à infância que eu devo aturar, enquanto espero ansiosamente pelo momento de finalmente encerrar o livro.

Cristiane Neves
01-12-09
11:02

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Locomotiva




Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

Mal o trem chega na estação e já encontra-se novamente em movimento.

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A cada estação que passa o trem aumenta a velocidade.

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

Passageiros passageiros,
Passageiros permanentes,
Passageiros sobem,
Passageiros descem,
Passageiros no último vagão,
Passageiros no primeiro vagão,
Passageiros mudam de lugar...

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A paisagem também é passageira.
Só o destino é imutável,
Inevitável...

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A última estação se aproxima.
Falta carvão para a caldeira.
A pouca fumaça a escapar da chaminé esta escura,
A locomotiva perde velocidade.

En-tra-a-no,
Sa-i-a-no,
En-tra-a-no,
Sa-i-a-no,
En-tra-a-no,
Sa-i-i-i...

A bruma que cobre a estação final envolve por fim a Maria Fumaça.
A viagem terminou.

Cristiane Neves
26/12/2010
01:27

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Espírito do Natal Eterno




“— Por que não festeja o Natal a seu modo e esquece que eu existo?
— Porque o Natal é  tempo de caridade e perdão -  respondeu o sobrinho. - É a época do ano em que homens e mulheres abrem  seus corações e  tratam todas as criaturas como iguais, tenham ou não dinheiro. Somos companheiros da mesma jornada. É por isso, tio, que eu repito: Deus abençoe o Natal!”
Um Conto de Natal – Charles Dickens


Por várias anos tentei escrever sobre o Natal. Mas o que eu poderia dizer que ainda não foi dito? Como dizer? Sendo minha época favorita do ano, eu tenho imensa dificuldade em expressar-me a respeito. Este ano, no entanto, aceitei o desafio.
            As pessoas que me conhecem, tal como prova a maioria de meus textos, poderiam dizer que, em geral, apresento uma visão cínica, racional, irônica a respeito de... bom, tudo. Seria de se esperar que, sendo o assunto Natal, frequentemente visto como uma época do ano marcada pelo consumismo e excessos, contraditoriamente ligada à religião e afastada da mesma, de ilusões infantis e desilusões adultas, seria a oportunidade para armar-me do mais fatal veneno verbal e inoculá-lo em todos os queridos símbolos da festividade.
Creio que poderia falar da forma como tantas tradições adotadas por nós brasileiros não fazem sentido no país tropical em que vivemos; certamente citaria como a Coca-cola comprou Papai Noel; explicaria a origem do Natal a partir de rituais pagãos; protestaria contra a pouca consideração para com outras religiões que também celebram eventos importantes no período; entre outras tantas críticas que não deveria deixar de tecer.
Mas acontece que nem mesmo eu resisto aos encantos do Natal. É verdade que cresci vendo filmes americanos sobre esta data, tendo sonhado por muito tempo com um “natal branco”. Porém, se não tinhamos neve, podiamos contar com a chuva. Aliás, todos os anos fico atenta ao momento em que as noites começam a exalar um “cheiro de Natal”. Trata-se de uma mistura de terra molhada, com cheiro de biscoito e um vento fresco a soprar pelas janelas, quebrando o forte calor de verão.
Outra comparação com o natal americano seria a questão de músicas. Certo é que nas festas de Natal de minha infância não ouvíamos músicas como White Christmas, It’s cold outside, ou Twelve days of Christmas, mas nossa tradição familiar demandava Roberto Carlos. Sendo meu avô conterrâneo e grande fã do Rei, inevitável que ganhesse todos os anos o novo disco de seu cantor favorito e o pusesse a tocar a noite inteira.
E como não gostar de tudo o que havia no Natal? Férias. Minhas comidas e doces favoritos. Sapatos na árvore a substituir as meias na chaminé gringa. Brinquedos novos, com aquele cheiro de plástico e da cola do adesivo, um acabamento que sempre acompanhava o presente se o mesmo tivesse de ser montado (eletrodoméstocos da Barbie ou veículos dos Comandos em Ação, por exemplo). Muitas vezes a reunião de primos, estreiando os brinquedos novos, fossem jogos de video game, bonecas, carrinhos ou pistolas de água.
Assim eu cresci, vendo no Natal uma época verdadeiramente mágica. Quando pequena cheguei ver uma rena do Papai Noel “estacionada” no quarto de minha avó, tão forte era o clima natalino que nos envolvia. Tudo sempre pareceu possível, principalmente no dia 24 de dezembro, a expectativa, os preparativos, uma véspera que sempre se mostrou muito mais Natal que o próprio dia de Natal.
Claro que muitos dirão que é fácil amar o Natal quando se é criança, marcado pela inocência, cego aos problemas adultos, sem preocupações para atrapalhar o feriado cristão. É inevitável crescer, inevitável tornar-se adulto. Com a passagem dos anos aprendemos que não há Terra do Nunca para fugirmos e sermos crianças para sempre.
Não me lembro de quando descobri que Papai Noel não existe. Acho que, na verdade, continuo a acreditar até hoje. Talvez não em um Papai Noel velhinho que vive no Polo Norte fazendo brinquedos para distribuir a todas as crianças do mundo, mas sim como um sentimento de felicidade, bondade, generosidade, entre outras energias positivas, que apresenta-se a todos aqueles que mantiverem seus corações abertos.
É por isso que, mesmo admitindo que um pouco do encanto do Natal se esvai a medida que envelhecemos, creio ser preciso saber manter vivo o espírito natalino, deixando-se levar pelo clima das festas, acreditando e envolvendo-se na magia da época.

 “Hei  de honrar o Natal no meu coração todos os anos! Hei de guardar os espíritos do Natal presente, do passado e do futuro e seguir suas lições!” – O Conto de Natal – Charles Dickens


Cristiane Neves
22/12/2010
01:17

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O que os perfumes escondem




            Os aromas do mundo me cobrem. Perfumes de flores no jardim do edifícil residencial, perfume do casal enamorado que passeia ao luar, perfume da terra úmida de chuva recente.
            As fragrâncias do mundo me envolvem como veludo. É macio, protetor, quente. Carregam-me pelas ruas direcionando meu destino. De repente me levam para onde não quero ir. A passos rápidos já não me carregam, me arrastam.
Os odores do mundo me esmagam. E tudo se torna feio, e dói, e fede. O cheiro fétido dos esgotos, dos rios, dos canos de descarga, dos cantos escuros das ruas.
Eu prendo a respiração e espero que o mau cheiro passe. Quero uma faxina, mas tudo o que consigo é um pouco de água de cheiro.

Cristiane Neves
2004

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

La danza




         Ok, então eu estou em uma festa de arromba em que a “música” tocando quase estoura meus ouvidos. “Eguinha pocotó”, nada mais idiota do que isso poderia fazer sucesso. Não é só a letra, é o ritmo. Quando a música começa parece que o lugar se transforma em uma espécie de inferno barulhento, sem harmonia, quente e apertado por todas as pessoas que começam a pular ao mesmo tempo. E há tantas músicas como essa... Axé, funk, tanta coisa ruim que eu prefiro me sentar em uma mesa. E claro que como sempre acontece alguém se aproxima de mim e me pergunta se não vou dançar. Como sempre respondo que não, não gosto de dançar. Ao fim da festa falam que eu sou quietinha e/ou não aproveitei a festa direito.
         É verdade que talvez eu não tenha gostado muito da festa, mas aproveitei mais do que se tivesse dançado. Mas o que mais me incomoda não é o fato do que dizem, mas o que eu mesma digo: “não gosto de dançar”! Besteira! Eu amo a música e adoro deixá-la me dominar e controlar meus movimentos. Mas estou falando de música e dança de verdade.
         Há pouco tempo li Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, onde eram descritas várias vezes as festas da sociedade inglesa de sua época. Não que eu gostaria de freqüentar aquela sociedade preconceituosa e cheia de regras. Já é difícil agüentar a intolerância e idiotice da sociedade atual, mas quanto às festas daquela época... Verdadeiros cavalheiros e damas! Também há pouco tempo assisti ao filme Memórias Póstumas e talvez por isso esteja um tanto influenciada por épocas passadas. Mas sinceramente, aquelas músicas eram maravilhosas, harmoniosas, impecáveis. O rodopiar, o cavalheiro conduzindo a dama por todo o amplo salão, eis uma dança que causa uma sensação esplêndida para mim, aliás, creio que causaria prazer à maioria das pessoas.  
         Uma dança como essa seria a união perfeita entre dois seres que se amam, o dançarino e a música. Escrevi uma crônica onde eu comparava a música com o amor. A dança seria o sexo, uma união de certo modo carnal entre o ser físico e a abstração da música. Portanto afirmo em alto e bom som “EU AMO DANÇAR” (ainda que não o saiba), negá-lo seria como afirmar não gostar de sexo.
Melhor que simplesmente dançar é dançar com a pessoa amada. Juntar as duas maiores paixões em uma, um verdadeiro ménage a trois.
         Em minha opinião a melhor das danças, a mais bela de se assistir e provavelmente a mais gostosa de se dançar (um dia hei de aprender) é o tango. Não há dança mais sensual e significativa.
         Não tenho esperança de uma mudança repentina da preferência de ritmos de nossa sociedade, mas pretendo agarrar-me à idéia de que ainda encontrarei alguém que compartilhe o suficiente de minhas idéias para aceitar, um dia, guiar-me por um enorme salão ao som de um tango argentino.


Cris Neves

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A Vela e a Tempestade




Eu observo a vela sobre a mesa. Dois terços da cera jaz derretida, espalhada pela madeira irregular. As linhas que formam lembram as esculturas criadas pelo efeito milenar de água infiltrando na rocha.
A luz que a chama produz não se projeta muito longe, de forma que a maior parte do amplo cômodo permanece no mais absoluto negrume. Mas olhando a vela assim, de perto, vejo a beleza do azul, amarelo, laranja e vermelho dançando ao ritmo do vento que penetra pela fresta da janela.
Lá fora a tempestade continua. Um relâmpago risca o céu e por alguns segundos tudo se ilumina. Quase simultaneamente o estrondo retumba. O raio caiu perto. A chuva parece longe de terminar.
Ouço as árvores sacudirem furiosas. A água cai com força sobre as telhas. Escuto gotas intrometidas batendo no chão em algum no cômodo, mas não consigo localizar.
Faz frio. Chego as mãos perto da vela. O calor não é suficiente para aquecer-me por completo, mas bastari deixar minha pele encostar a chama por alguns instantes para queimar-me.
A força do vento abre uma das janelas de madeira. A vela se apaga. Chove dentro de meu abrigo. Devagar e com cuidado, consigo chegar até a janela e fechá-la. A escuridão agora é completa. Tateando e com ajuda de alguns relâmpagos, consigo voltar para a mesa.
Acendo novamente a vela, mas ela permanece iluminada apenas por alguns minutos, reduzindo-se a uma mera poça de cera branca-amarelada, semiamolecida, esparramada na tosca mesa de tábuas.
A tempestade continua intensa. Eu permaneço sentada. Fecho os olhos e vejo o azul, amarelo, laranja e vermelho dançando. De repente, me tenho transformada em uma chama trêmulante brilhando no escuro. Foram apenas alguns segundos, mas abro os olhos e horas se passaram. A tempestade se reduziu a uma garoa suave. O dia começa a amanhecer, ainda cinzento, mas prometendo mudanças.
“Acabou a emoção...” – eu penso, enquanto vou para o quarto dormir.

Cristiane Neves
24/10/10
02:35

sábado, 16 de outubro de 2010

POLÍTICA E RELIGIÃO


Da hipocrisia de José Serra à inconstância
das convicções de Dilma Rousseff


Eu não entendo como as pessoas misturam tudo com religião. Política, ciência, arte, nada está a salvo do olhar condenador das religiões, dos religiosos, e dos que se dizem religiosos sem sequer conhecer a fundo os dogmas de suas seitas.
Nas últimas semanas a religião tem andado lado a lado com a política. Cabos eleitorais e eleitoreiros, marqueteiros e simpatizantes parecem tentar utilizar a postura dos candidatos diante da religião como ponto a favor ou contra, como se tivesse qualquer relação com a capacidade de governo do candidato. Ora, o Brasil é (pelo menos em teoria) um país laico, ou seja, estado e religião não se confundem.
Eu sei que isso não significa dizer que se trata de um país ateu, afinal o preâmbulo da Constituição Federal declara:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL." 
Fica dificil classificar o Brasil como um Estado laico se em sua constituição se encontra expressa a existência de Deus. Eu, particularmente, acho que a afirmação constitucional da proteção divina não deveria existir, visto que pessoas que não crêem na existência de Deus podem se sentir diminuídas, discriminadas, ou até mesmo sentirem que seu direito de crer (ou não crer) foi violado.
Imaginem o que os judeus não sentiriam se, no lugar da palavra Deus, o legislador colocasse a palavra Cristo. Mesmo através do uso do vernáculo original são excluídas diversas religiões, a exemplo da Wicca, que acredita em uma Deusa-mãe, além de uma variedade de deuses complementares.
Seria isso uma postura neutra em relação a religiões?
Doutrinadores afirmam que o preâmbulo da constituição apenas "reflete ordinariamente o posicionamento ideológico e doutrinário do poder constituinte"[1], sem possuir força cogente, a menos que seu conteúdo seja reafirmado no texto da constituição em si.
Desta forma, observamos que a referência a Deus não aparece nos artigos que compões a Carta Magna. Pelo contrário, o inciso I do artigo 19 determina:
"É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na formada lei, a colaboração de interesse público;"
É aqui que se afirma a secularidade do Estado Brasileiro.
Mesmo tendo claro que, juridicamente, religião não deve influenciar na política de nossa Pátria, popularmente sua influência é grande, de forma que neste ano eleitoral a fé tem sido a maior arma da oposição para minar a credibilidade da candidata da situação. Não oficialmente, é claro.
Em discurso recente, dentro da basílica de Nossa Senhora Aparecida, em pleno 12 de outubro, dia da Padroeira do Brasil, José Serra alegou, hipocritamente, que a religião nao é um argumento político, visto se tratar de um país laico (leia aqui).
No entanto, seja pela internet (através de e-mails ou infinitas redes sociais, como facebook, twitter, orkut, etc), seja por mensagens do celular, seja nas capas de revistas e de jornais nas bancas, ou mesmo nas mesas de bares, não cessam os ataques à candidata Petista devido seus posicionamentos em relação a religião.
Neste ponto do texto, acredito ser importante ressaltar que não gosto de Dilma Rousseff e não votarei nela. Votarei justamente no hipócrita do Serra, só para não vê-la no poder. Isto porque, sem apelar para questões religiosas, já existem argumentos suficientes para NÃO votar em Dilma. Se a idéia é atacá-la, basta invocar seu histórico, de seu ministério, como o que tem sido feito oficialmente nas propagandas de Serra.
E falando em histórico, se por um lado Serra é hipócrita, fingindo que o ataque religioso não é uma estratégia, o que dizer de Dilma, incapaz de manter um posicionamento devido a pressões de grupos religiosos? Ora, cadê o espírito rebelde e revolucinário que lutou contra a ditadura? Não é capaz de manter uma opnião polêmica por ser ela contrária à corrente majoritária?
Não vou me aprofundar no tópico “aborto”, pois este seria assunto para todo um livro, mas como acreditar em convicções políticas de alguém que muda de opinião com a direção do vento?
Se este argumento da inconsistência de suas opiniões é válido, o mesmo não pode ser dito quanto a seu posicionamento religioso. O fato de uma pessoa ser mais religiosa do que a outra não significa ter uma moral ilibada, valores corretos, ética e integridade profissional.
A fim de provar que bom governo e religião não têm relação, poderia citar as nações teocráticas, como o Irã ou a Arábia Saudita, locais onde o cerceamento de direitos humanos é a regra e guerras são constantes, tudo em nome da fé. Mas eu prefiro demonstrar a veracidade de meu argumento com a seguinte passagem do discurso de um político muito conhecido, morto há 70 anos:

 “Meu sentimento como cristão aponta-me para o meu Senhor e Salvador como um lutador. (...) No meu amor sem limites como cristão e como homem, eu leio a passagem que nos conta como o Senhor finalmente se levantou em seu poder e tomou do chicote para expulsar do Templo a raça de víboras e vendilhões."

        Até este ponto o texto ainda apresenta um conteúdo aceitável. Poderíamos pensar em um político limpando o país da corrupção ou algo semelhante. No entanto, o parágrafo seguinte não deixa dúvida a respeito da identidade do autor deste discurso:
 “Como foi maravilhosa a sua luta contra o veneno judeu. Hoje, depois de dois mil anos, com a mais profunda emoção, eu reconheço mais do que nunca o fato de que foi por isso que Ele teve de derramar o seu sangue na cruz.” - Adolf Hitler - Minha Luta
         Como se vê, está correto o ditado que diz que até o diabo pode citar a Escritura Sagrada quando servir a seus propósitos.


Cristiane Neves
14/10/2010
23:17


[1] FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 1ª ed. v. I, São Paulo: Saraiva, 1989.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

PLATONISMOS PLATONICOS III



Ou de como mesmo as melhores pessoas esquecem de olhar para baixo de vez em quando


Ô moço bonito! Passas sem me ver
Prazer para os olhos, mas tortura para alma
Andas como um rei, todas as camponesas aos pés
Fosse outro as pisaria a todas, mas assim como és
Apenas segues caminho, levando para cama
Aquela que, dentre muitas, escolher

Adônis pós-moderno, em lugar de batalhas
Talhas físico na academia, queres corpo perfeito.
És alto, tens ombros largos, peito amplo e braço forte.
As pernas grossas e mãos grandes sugerem teu porte.
Pele morena e sorriso branco completam o efeito
De um homem ímpar, eterno e sem falhas.

Observo teu gênio, pois defeito há de ter
Sempre calmo, a fala macia, e de que maneira
Tua simpatia a todos cativa! Deus sabe quanto penei
Mas depois de muita procura, o defeito eu encontrei
Não é tua personalidade, mas sim tua cegueira.
És moço bonito e passas sem me ver...


Cristiane Neves
05/10/09 – 21:30

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

PLATONISMOS PLATÔNICOS VII



Reencontros

“O que dizer a alguém com quem não temos contato há 15 anos? E quando esta pessoa, em determinado momento no tempo, nos significou mais do que é possível exprimir, comprometendo nossa consciência, integridade e moral?”


Amizade. Coleguismo. Amor. O que é capaz de sobreviver ao tempo e à distância?
Hoje nós temos tecnologias que facilitam o contato, superando o espaço, vencendo o tempo. Mas as ocupações do dia a dia acabam por tornar as relações superficiais. Um dia você acorda e vê que o único contato com aquele melhor amigo da 5ª série se resume a postar uma mensagem de feliz aniversário no orkut. Mesmo assim, só porque o próprio site de relacionamentos te lembra daquela data.
Fato é que o esquecimento, o estranhamento mesmo, são inevitáveis quando há distância entre as pessoas por prolongado período de tempo. São raras as amizades capazes de resisitir a este teste.
Normalmente os acontecimentos inevitáveis da vida nos levam por caminhos os mais diversos. Ao longo do percurso, encontramos pessoas diferentes e passamos por elas, deixando-as seguir seus rumos enquanto continuamos em nossa própria trilha.
Às vezes há o reencontro. Após alguns segundos de euforia, torna-se um anticlimático momento de constrangimento. Assim, grandes amigos de tempos atrás fingem colocar em dia as notícias sobre suas vidas. Relatam em que trabalham, com quem casaram e quantos filhos tiveram, deixando de lado detalhes como o baixo salário, a crise no casamento e as revoltas adolescentes do primogênito.
Em poucos minutos, exaurem este tópico, pondo-se, então, a relembrar o passado. Momentos divertidos, passagens difíceis, memórias que ambos carregarão para sempre. Logo, mais este assunto se encerra. Não há o que falar. Não há nada em comum entre os dois. Não fazem parte do presente um do outro.
E quando nos deparamos com um grande amor de outrora? Creio que o mais das vezes a reação é riso, alívio ou simplesmente indiferença. Nestes casos, ficar tentando identificar o que nos teria feito apaixonar por tal pessoa é uma tarefa verdadeiramente árdua. Na realidade, se trata de empreendimento inútil, pois aquelas duas pessoas que se vêem frente a frente não são as mesmas de anos atrás.
É preciso agradecer a Deus por estas mudanças.
Apesar do alívio de perceber tal amor superado, a ferida há muito cicatrizada, não deixa de ficar ali uma decepção, uma nostalgia, a sensação de que algo se perdeu.
E se ao encontrar tal amor perdido, a sensação for de despertar algo há muito adormecido, algo que se acreditava morto? Descobrir brasa aonde acreditava haver apenas cinza... Isto é possível?
Ao ler o grande poeta Olavo Bilac acredito que sim. Sua malfadada história de amor é conhecida. Noivo da poetisa Amélia de Oliveira, teve o casamento impedido pelo irmão de sua amada, permanecendo ambos solteiros por toda a vida.
Dizem que se encontraram depois de 20 anos separados. Do episódio resultou o soneto Milagre, de Bilac:

Depois de tantos anos, frente a frente,
Um encontro... O fantasma do meu sonho!
E, de cabelos brancos, mudamente,
Quedamos frios, num olhar tristonho.

Velhos!... Mas, quando, ansioso, de repente,
Nas suas mãos as minhas palmas ponho,
Ressurge a nossa primavera ardente,
Na terra em bênçãos, sob um sol risonho

Felizes, num prestígio, estremecemos;
Deliramos, na luz que nos invade
Dos redivivos êxtases supremos;

E fulgimos, volvendo à mocidade,
Aureolados dos beijos que tivemos,
No divino milagre da saudade.

Teria sido por esta época que Amélia escreveu os seguintes versos:

Não te peço a ventura desejada,
Nem os sonhos que outrora tu me deste,
Nem a santa alegria que puseste
Nessa doce esperança, já passada.

O futuro de amor que prometeste
Não te peço! Minha alma angustiada
Já te não pede, do impossível, nada,
Já te não lembra aquilo que esqueceste!

Nesta mágoa sorvida, ocultamente,
Nesta saudade atroz que me deixaste,
Neste pranto, que choro ainda por ti,

Nada te peço! Nada! Tão-somente
Peço-te agora a paz que me roubaste,
Peço-te agora a vida que perdi!

Completando a triste história, contam ainda que, após a morte de Bilac, Amélia teceu-lhe um travesseiro recheando-o com mechas de seu cabelo, descansando nele a cabeça de seu grande amor.
Será possível então, que a distância e o tempo podem ser superados por sentimentos nobres? Ou será que tais sentimentos somente se mantiveram nobres devido aos obstáculos, mantendo a idealização, a perfeição platônica?
Acho que ainda preciso percorrer um longo caminho até poder responder a estas perguntas. Por enquanto, continuo dando graças a Deus pelas mudanças que nos salvam da estagnação, mesmo que o preço, às vezes, possa parecer alto.

Cristiane Neves
29/09/10
20:04

PS: A foto deste post é do reencontro do leão Christian com os homens que o criaram, depois de um ano em seu habitat natural. Quem já viu o video tem de acreditar que existem laços que permanecem.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Atemporal




Você já sentiu algum dia que não pertence a seu tempo? Sinto isso a todo o momento. O problema é que não sei em que época eu deveria ter nascido. Certos momentos tenho claro em minha mente que não poderia viver em um mundo de mentalidade tão fechada quanto o de antigamente, ou até mesmo o atual. São nestes momentos que penso pertencer ao futuro.
Vejo que as pessoas de hoje em dia ainda tentam regular a vida dos outros quando em nada lhes diz respeito; ainda cultivam seus preconceitos e têm grandes dificuldades em quebrar paradigmas; ainda têm preguiça de pensar por si mesmas, se deixando levar pelo pão e circo de cada dia (tantas vezes carentes de pão, mas o circo não falta); ainda, ainda, ainda...
Em outros momentos me vejo buscando o passado, como por exemplo as décadas da primeira metade do século XX. Tempos de vida mais simples, de arte frutífera, moda tão atraente, grandes descobertas das ciências e tecnologias que davam esperança de um mundo melhor. Nos anos 60 o futuro retratado nas obras de ficção, como no desenho animado dos Jetsons ou no seriado Jornada nas Estrelas, nos mostravam a esperança daquela época em um futuro espetacular. Hoje, nossos filmes em geral nos pintam futuros pós-apocalípticos, indicando o declínio da raça humana, ao exemplo de Matrix.
Pensando sobre passado e futuro, sabendo bem a história que ficou  para trás e a para a qual caminhamos, sei que em ambos os tempos não me encaixo. O futuro não me parece otimista, pois sei que será formado pelas pessoas que hoje crescem expostas a uma educação de baixa qualidade e com poucos incentivos culturais. O passado, como já disse, traz um modo de pensar, de viver com o qual não concordo.
Volto-me então ao presente. Foi o tempo ao qual disse não sentir me encaixar, e disso estou certa. Ando entre as pessoas muitas vezes como um ser de outro planeta, em outras como uma pessoa invisível. Ou não me faço notar, por não ter com que contribuir, ou minha contribuição me destaca de tal forma que vejo no olhar das pessoas aquela diferenciação: não sou um igual.
Sou diferente, não há duvida. Também não sei se gostaria de ser de outra forma. Tenho certeza, no entanto, de que não pertenço ao presente. O passado não me aceitaria. O futuro não me quer. Sou alguém sem tempo e sem lugar.

Cristiane Neves
23/10/09
21:59

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Evolução




Eu nasci nos anos 80. Já era o fim do século vinte, e as grandes revoluções sociais já haviam acontecido. As décadas de 60 e 70, anos de mini-saia, biquini, pilulas anticoncepcionais, sexo, drogas e rock&roll já haviam acabado. E é claro que desde então eu, junto de minha geração, vim colhendo os frutos dessas mudanças tão importantes para a emancipação da mulher, para a política brasileira, para a liberdade de expressão, de pensamento, entre outros. Evolução, eles dizem. Mas até que ponto?
Eu não estou querendo desmerecer todas as conquistas que enumerei aqui. Acho que foi tudo muito importante, muito bem vindo, o progresso não deve parar, mas algumas coisas se perderam. Ah, os namoros de antigamente com os quais posso apenas sonhar! A corte. Hoje em dia não se faz mais a corte. Acho que os jovens nem sabem o significado da palavra. Eu recomendaria a eles que buscassem no dicionário a definição do vocábulo, mas creio que possam não saber como se pesquisa no “pai-dos-burros”, tão acostumados estão com as respostas através de um clique do mouse. Sendo assim, se por ventura algum jovem estiver lendo esse texto, deixe-me elucidá-lo:
Corte – assiduidade junto de uma pessoa, para lhe ganhar as boas graças; galanteio
Isso mesmo, assiduidade, frequência. Era preciso insitir, correr atrás de quem você gostava. E se você cortejava alguém, cortejava apenas aquele alguém, era porque devia valer a pena. Nada do cara agarrar o braço da garota na balada e falar “E aí, véio? Já foi ou já era?”. Isso quando ele se esforça por pronunciar alguma palavra, ao invés de partir direto para o beijo.
Nos idos de antigamente não existia o “ficar”. Ou era namoro, ou não havia nada entre o casal. Isso gerava uma certa segurança que falta nos dias de hoje. Como saber quando se está namorando atualmente? São raros ou pedidos de namoro. Depois de algum tempo ficando, se percebe namorando. Mas eu confesso que ainda não alcancei a sabedoria dos tempos atuais para ser capaz de identificar esse momento, essa transição do casual para o relacionamento sério.
O que se vive hoje é uma carência afetiva coletiva. As pessoas dizem estar tentando acalmar seus hormônios, seus desejos, quando, na verdade, todos querem a mesma coisa, ainda que não assumam. E a partir daí vivem da simulação do afeto. Em uma noite um casal finge se conhecer, se colam em carinhos e atenção, e se separam para nunca mais se encontrarem. Um relacionamento relâmpago que termina, em sua maioria, com uma troca de números e promessas, em geral vazias, de telefonema.
Às vezes o contato se prolonga para além daquela noite, ainda na necessidade de preencher o vazio das relações sociais de nosso tempo. As pessoas seguem testando umas às outras como se experimentassem sapatos em busca de um número que lhes caiba. Querem encontrar alguém com quem consigam uma conexão física e mental e enquanto não encontram, vão “improvisando” com o que lhes aparece pela frente.
Hoje em dia não se conquista, meramente se atrai. E uma vez atraídos se “enrola”, “empurra com a barriga”, se acomoda em um simulacro de relacionamento até que um dos dois seduza ou seja seduzido por uma terceira pessoa.
Claro, existem casos em que a sorte ou o cupido faz com que essas duas pessoas seduzidas se apaixonem de verdade, embarcando em um relacionamento real. Mas também existe aquele casal que acredita que tem de se apaixonar, que tem de ser um casal de verdade, ainda que não possuam tantas afinidades. É o pior dos casos, pois denuncia uma grande carência que eles querem cobrir a qualquer custo.
Eu acho que as pessoas hoje em dia são bem mais neurótica do que antigamente. São tantas incertezas, tantos talvez, tantas tentativas de ler nas entrelinhas, interpretar os mínimos gestos, as mínimas palavras, tudo inutilmente. Seria bem mais fácil se homens e mulheres pudessem ser simplesmente sinceros, dizer diretamente o que estão pensando, o que sentem, o que querem, sem medo de assustar a outra pessoa, sem medo de ser mal interpretado, apenas com o objetivo de “ser”.
Será que tantas evoluções sociais, tantas mudanças em tempo tão curto, farão nada além de criar mais obstáculos para a já difícil relação interpessoal? Será que a facilidade de aproximação das pessoas (liberdade, tecnologia) apenas as afastarão umas das outras? Ou será que estamos simplesmente passando por uma dessas fases de transição (que eu já disse ser pessima para identificar) e que em breve as pessoas poderão finalmente se encontrar?

Cristiane Neves
26/06/2006