sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Aniversário




Sou conhecida como Vovó Zenaia e hoje é meu aniversário. Estou completando 90 anos de idade. Esta noite meus familiares comemorarão a data com uma festa reunindo até parentes distantes. Acho que estão cientes que não devo durar muitos anos mais.
É difícil chegar aos 90 anos. Acho que de certa forma sou privilegiada. Tenho minhas faculdades mentais em boas condições, apesar da idade. Busco exercitar sempre minha mente de forma a mantê-la alerta. Mulher à frente de meu tempo, estudei muito, fui professora, sempre gostei de ler e continuo com meus hábitos. Ainda assim, muitas vezes sinto dificuldade ao tentar lembrar-me de fatos acontecidos durante o dia, ou ainda de comunicar-me. Temo que a situação esteja piorando a cada dia.
Noventa anos também é difícil para o corpo. Canso com facilidade, tenho dores nas juntas com frequência, uso aparelho auditivo e já tive de submeter-me a cirurgia de catarata. Minhas mãos são trêmulas, os ossos frágeis e a pele tão fina que se corta com facilidade.
Doi muito a reação das outras pessoas quando me vêem. Parece que a sociedade, ao tentar valorizar a terceira idade, nos reduziu à situação de bebês. Perco a conta de quantas vezes por dia escuto mulheres emotivas dizerem na rua “Nossa, que gracinha de velhinha!”, ou ainda, ao conversarem comigo, usarem tons infantis, como ao tentar explicar algo complicado a uma criança.
E quanto a esta valorização da terceira idade, não tenho certeza de que existe de verdade. A sensação que tenho é de que as pessoas jovens apenas nos toleram por ser este o comportamento considerado correto nos dias de hoje. Não há uma inclusão real no mundo. A cada aniversário ficamos mais e mais à margem da sociedade e mesmo das decisões que influenciam os rumos da humanidade. Faz sentido. Em breve não estaremos mais aqui, então por que teriamos vez, não é mesmo?
Mas acredito que minha vaidade é o que mais sofre com a idade. Olho-me no espelho e não me reconheço em nada do que vejo. Ao longo dos anos acompanhei o surgimento de cada ruga, cada cabelo branco, mas hoje choca ver-me assim: encurvada, a cabeça coberta por finos e ralos cabelos brancos, os olhos desbotados...
Eu era bela, cobiçada pelos homens. Tive muitos admiradores, casei-me duas vezes. Meus cabelos eram impecáveis, a pele uma seda, as roupas sempre na última moda. E agora não há sequer quem se lembre daquela época. Para todos os que me cercam eu sou e sempre serei Vovó Zenaia.
Ninguém me conhece. Não sabem dos sonhos que tive e nunca pude realizar, não sabem das aventuras que vivi, dos segredos que guardei, das dores que sofri, dos amores que perdi, das amizades que sumiram no tempo.
Não sou mais mulher, sou velha. A senhorinha idosa que mora no fim da rua. Ficariam todos horrorizados se soubesse que eu, ao assistir à novela, também acho bonito aquele protagonista moreno, jovem e forte, e muitas vezes surpreendo-me, imaginando como seria um beijo daquela boca.
Beijos... Há tantos anos não sei mais o que é beijar, ser tocada e amada por um homem. Com a idade nos tornamos espectadores da vida, não mais participamos dela. Dia após dia se torna como mais uma página de um epílogo entediante e interminável.
Sou a última entre os de minha época. Meus amigos de infância, colegas de escola, trabalho, ou já morreram ou o tempo os levou para longe. De muitos nem lembro mais o nome. Vejo-me às vezes confundindo, juntando em uma pessoas características de dois velhos amigos de tempos diferentes. É a memória que desbota.
Agora estou aqui, sentada no banco da praça tomando um pouco do sol das 16 horas. Sei que dentro de pouco tempo minha neta virá me procurar, para saber o que estou “aprontando”, e mandar-me para o banho, pois os convidados logo começarão a chegar. É a regressão à infância que eu devo aturar, enquanto espero ansiosamente pelo momento de finalmente encerrar o livro.

Cristiane Neves
01-12-09
11:02

domingo, 26 de dezembro de 2010

A Locomotiva




Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

Mal o trem chega na estação e já encontra-se novamente em movimento.

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A cada estação que passa o trem aumenta a velocidade.

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

Passageiros passageiros,
Passageiros permanentes,
Passageiros sobem,
Passageiros descem,
Passageiros no último vagão,
Passageiros no primeiro vagão,
Passageiros mudam de lugar...

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A paisagem também é passageira.
Só o destino é imutável,
Inevitável...

Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano,
Entra-ano,
Sai-ano...

A última estação se aproxima.
Falta carvão para a caldeira.
A pouca fumaça a escapar da chaminé esta escura,
A locomotiva perde velocidade.

En-tra-a-no,
Sa-i-a-no,
En-tra-a-no,
Sa-i-a-no,
En-tra-a-no,
Sa-i-i-i...

A bruma que cobre a estação final envolve por fim a Maria Fumaça.
A viagem terminou.

Cristiane Neves
26/12/2010
01:27

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Espírito do Natal Eterno




“— Por que não festeja o Natal a seu modo e esquece que eu existo?
— Porque o Natal é  tempo de caridade e perdão -  respondeu o sobrinho. - É a época do ano em que homens e mulheres abrem  seus corações e  tratam todas as criaturas como iguais, tenham ou não dinheiro. Somos companheiros da mesma jornada. É por isso, tio, que eu repito: Deus abençoe o Natal!”
Um Conto de Natal – Charles Dickens


Por várias anos tentei escrever sobre o Natal. Mas o que eu poderia dizer que ainda não foi dito? Como dizer? Sendo minha época favorita do ano, eu tenho imensa dificuldade em expressar-me a respeito. Este ano, no entanto, aceitei o desafio.
            As pessoas que me conhecem, tal como prova a maioria de meus textos, poderiam dizer que, em geral, apresento uma visão cínica, racional, irônica a respeito de... bom, tudo. Seria de se esperar que, sendo o assunto Natal, frequentemente visto como uma época do ano marcada pelo consumismo e excessos, contraditoriamente ligada à religião e afastada da mesma, de ilusões infantis e desilusões adultas, seria a oportunidade para armar-me do mais fatal veneno verbal e inoculá-lo em todos os queridos símbolos da festividade.
Creio que poderia falar da forma como tantas tradições adotadas por nós brasileiros não fazem sentido no país tropical em que vivemos; certamente citaria como a Coca-cola comprou Papai Noel; explicaria a origem do Natal a partir de rituais pagãos; protestaria contra a pouca consideração para com outras religiões que também celebram eventos importantes no período; entre outras tantas críticas que não deveria deixar de tecer.
Mas acontece que nem mesmo eu resisto aos encantos do Natal. É verdade que cresci vendo filmes americanos sobre esta data, tendo sonhado por muito tempo com um “natal branco”. Porém, se não tinhamos neve, podiamos contar com a chuva. Aliás, todos os anos fico atenta ao momento em que as noites começam a exalar um “cheiro de Natal”. Trata-se de uma mistura de terra molhada, com cheiro de biscoito e um vento fresco a soprar pelas janelas, quebrando o forte calor de verão.
Outra comparação com o natal americano seria a questão de músicas. Certo é que nas festas de Natal de minha infância não ouvíamos músicas como White Christmas, It’s cold outside, ou Twelve days of Christmas, mas nossa tradição familiar demandava Roberto Carlos. Sendo meu avô conterrâneo e grande fã do Rei, inevitável que ganhesse todos os anos o novo disco de seu cantor favorito e o pusesse a tocar a noite inteira.
E como não gostar de tudo o que havia no Natal? Férias. Minhas comidas e doces favoritos. Sapatos na árvore a substituir as meias na chaminé gringa. Brinquedos novos, com aquele cheiro de plástico e da cola do adesivo, um acabamento que sempre acompanhava o presente se o mesmo tivesse de ser montado (eletrodoméstocos da Barbie ou veículos dos Comandos em Ação, por exemplo). Muitas vezes a reunião de primos, estreiando os brinquedos novos, fossem jogos de video game, bonecas, carrinhos ou pistolas de água.
Assim eu cresci, vendo no Natal uma época verdadeiramente mágica. Quando pequena cheguei ver uma rena do Papai Noel “estacionada” no quarto de minha avó, tão forte era o clima natalino que nos envolvia. Tudo sempre pareceu possível, principalmente no dia 24 de dezembro, a expectativa, os preparativos, uma véspera que sempre se mostrou muito mais Natal que o próprio dia de Natal.
Claro que muitos dirão que é fácil amar o Natal quando se é criança, marcado pela inocência, cego aos problemas adultos, sem preocupações para atrapalhar o feriado cristão. É inevitável crescer, inevitável tornar-se adulto. Com a passagem dos anos aprendemos que não há Terra do Nunca para fugirmos e sermos crianças para sempre.
Não me lembro de quando descobri que Papai Noel não existe. Acho que, na verdade, continuo a acreditar até hoje. Talvez não em um Papai Noel velhinho que vive no Polo Norte fazendo brinquedos para distribuir a todas as crianças do mundo, mas sim como um sentimento de felicidade, bondade, generosidade, entre outras energias positivas, que apresenta-se a todos aqueles que mantiverem seus corações abertos.
É por isso que, mesmo admitindo que um pouco do encanto do Natal se esvai a medida que envelhecemos, creio ser preciso saber manter vivo o espírito natalino, deixando-se levar pelo clima das festas, acreditando e envolvendo-se na magia da época.

 “Hei  de honrar o Natal no meu coração todos os anos! Hei de guardar os espíritos do Natal presente, do passado e do futuro e seguir suas lições!” – O Conto de Natal – Charles Dickens


Cristiane Neves
22/12/2010
01:17

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O que os perfumes escondem




            Os aromas do mundo me cobrem. Perfumes de flores no jardim do edifícil residencial, perfume do casal enamorado que passeia ao luar, perfume da terra úmida de chuva recente.
            As fragrâncias do mundo me envolvem como veludo. É macio, protetor, quente. Carregam-me pelas ruas direcionando meu destino. De repente me levam para onde não quero ir. A passos rápidos já não me carregam, me arrastam.
Os odores do mundo me esmagam. E tudo se torna feio, e dói, e fede. O cheiro fétido dos esgotos, dos rios, dos canos de descarga, dos cantos escuros das ruas.
Eu prendo a respiração e espero que o mau cheiro passe. Quero uma faxina, mas tudo o que consigo é um pouco de água de cheiro.

Cristiane Neves
2004