terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Braços abertos, boca fechada



Algumas vezes, apenas algumas vezes, se abraça tão completamente que nada mais existe. Não estou falando necessariamente de amor, mas de abraço verdadeiro, com vontade, por inteiro. São dois corpos que se encostam, os braços enlaçam um ao outro, apertados, como se a força pudesse fazê-los uno. Talvez se fosse assim a compreensão pudesse ser alcançada. Seria o abraço perfeito. Na união dos todos – dois corpos ocupam o mesmo lugar na existência – tudo o que se queira que o outro saiba ele se tornaria, e você se tornaria e nada além haveria.
 

Haveria apenas o aconchego, o calor, o conforto, a certeza, o descanso, o não pensar, o puro sentir. Sentir que é certo, que se encaixa, que mais do que a única alternativa, é a verdadeira.
 

Ainda que não se alcance essa cumplicidade, o bom abraço parece emitir a energia do que se quer que saiba. É um abraço tão reconfortante que não deve acabar, mas ele também tem de chegar ao seu fim. Nesses casos de abraços completos, ambos descobrem simultaneamente o momento da separação. E é aí que vem a frustração, a dor maior: a palavra.
 

Sempre tem de se falar alguma coisa em determinado momento, responder uma pergunta, ainda que seja um cumprimento desnecessário como “tudo bom?”. É então que o som mata o toque. Por que não podemos simplesmente ficar calados? O silêncio nos acompanha no abraço e deveria nos acompanhar na partida.

Um dia ainda vou ter coragem de fechar os ouvidos, dar as costas e ir embora.



Cristiane Neves
2004

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O Homem Perfeito




        As pessoas têm uma idéia pré-concebida do que precisam encontrar na vida para serem felizes. Baseando em milênios de cultura popular, livros, teatro, contos de fada, televisão, cinema, música, é como se houvesse um roteiro que a vida teria de seguir para chegarmos ao “...e viveram felizes para sempre!”.
        Nascer, ter uma infância feliz cheia de amigos e brincadeiras de boneca, bola e bicicleta. Crescer, se apaixonar e ter o coração partido  no colegial. Ir para a faculdade, se formar, encontrar um emprego e o grande amor de sua vida. Casar-se e ter um casal de filhos. Conseguir a casa própria, carro, vigens de férias em família para o litoral. Formar os filhos, se aprosentar e envelhecer junto à pessoa amada. Morrer dormindo em uma tarde de primavera.
        Mas a vida não é previsível assim. Ela é cheia de imprevistos e impecilhos, dificuldades, tragédias, surpresas. No entanto, é interessante pensar na expectativa das pessoas, e foi refletindo sobre essas expectativas, que me peguei imaginando as minhas próprias, principalmente no que diz respeito ao Homem Perfeito, meu Príncipe Encantado.
Como sonhar não paga imposto (por enquanto) comecei pensando em sua aparência física. Ainda não me decidi se iria preferir um Rodrigo Santoro ou um Johnny Depp. Acredito que escolho Depp, pelos maxilares proeminentes que tanto me atraem. Pensei em dar-lhe um par de olhos verdes, mas cheguei à conclusão de que ficaria uma beleza muito enjoativa, com um doce que é doce demais, como uma lata inteira de leite condensado comida de uma vez só.
Criada uma feição para meu Príncipe, comecei a pensar em seus modos. Um charme discreto e natural, que ele próprio ignore possuir. Um jeito de olhar que pareça perfurar meus olhos e entrar dentro de mim, desvendando todos os meus segredos: assustadoramente desconcertante, mas ainda assim, impossível de desviar o olhar.
Ele teria uma simpatia cativante e um sorriso de moleque safado, para me lembrar constantemente o quanto me deseja. Seria capaz de um abraço que me deixaria sem fôlego e com as pernas bambas, e um beijo que me faria esquecer de todo o mundo à minha volta.
Quando triste, meu Homem Perfeito deveria ficar com carinha de cachorro perdido, precisando de colo. Tem de saber me consolar também. É preciso que saiba que política, economia, trabalho são importantes, mas não o que há de mais importante na vida. Deve gostar de argumentar e saber aceitar quando perdeu o argumento. É necessário que tenha paciência comigo por não aceitar perder um argumento.
Ele teria pequenos defeitos, é claro, para não ser cansativo. Apertaria a pasta de dentes pelo meio, deixaria toalhas molhadas sobre a cama e cismaria em tirar meu livros de ordem. Quando nós brigassemos, ele seria irônico e sarcástico. Quero também que ele tenha algo muito brega em seu passado, como ser fã de Spice Girls, por exemplo.
Meu príncipe saberia ser rude e viril em certos momentos, e absolutamente carinhoso e gentil em outros. Em alguns, um jeito firme, seguro e forte de abraçar, em outros, aquela pegada mais suave, um toque que mal roça a pele.
Ele ainda seria inteligente sem ser esnobe, para me ensinar com humildade e ter ainda o que aprender comigo. Gostaria de ler. Saberia quem é David Copperfield (não falo do mágico); que filme Preto & Branco não é velharia; e que arte é uma das coisas mais importantes do mundo, pois promete ser eterna. Saberia ainda que filosofar é bom, mas que “há metafisica bastante em não pensar em nada”. Saberia que acabei de citar Alberto Caiero e que Caiero é Fernando Pessoa.
Gostaria que meu Homem Perfeito soubesse ser romântico, sem ser pegajoso; que fosse espontâneo para propor pequenas loucuras; que topasse as minhas pequenas loucuras; que aproveitasse a vida. Que sentisse prazer ao deitar em uma pedra quente às margens de um rio ao entardecer, e, que quando a noite chegasse, ele olhasse as estrelas e visse para além de meros pontinhos brilhantes no céu. Que ele tivesse a capacidade de fechar os olhos e não pensar em nada, apenas sentir.
E, principalmente, que me cativasse e me amasse... Mas como sei que este príncipe encantado não existe, ficarei muito feliz se um dia tropeçar em algum sapo que reúna, ainda que apenas, estes dois últimos requisitos que enumerei.

Cristiane Neves
2006

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Palavras vãs




            Por que cantam tanto a palavra? Por que o mestre Drummond diz “Lutar com as palavras é a luta mais vã / Entretanto lutamos mal rompe a manhã”? Por que ele se dá ao trabalho? Não sabe ele que certas coisas não podem ser escritas? Que certos sentimentos não cabem na tinta, não cabem no papel, não cabem na gente? É por isso que transbordamos em lágrimas, em choro descontrolado, ou explodimos em um riso gostoso maior que nossa boca, enquanto uma energia boa percorre todo o corpo (estômago – espinha – braços), energia gasta em pulos, fala descontrolada, a voz alterada pela felicidade.
            Não, ainda não é possível desvincular esses sentimentos da alma. Eu creio e até mesmo rezo para que nunca venha a existir qualquer semiótica capaz de criar essas relações, de prender tantos sentimentos a palavras. Espero que os sentimentos permaneçam únicos, fervilhando dentro da gente. É por isso que não cantarei a palavra, é por isso que, ao contrário do poeta, me abstenho do combate.
            Ora, mas o que estou eu a escrever! Eis aqui apenas mais um caso dos meus odiados amores. Juro que nunca vou compreender como é possível que eu mantenha tantas relações de amor/ódio como essa. Sim, eu admito, eu amo as palavras! Eu as amo mais do que elas podem dizer! Amo suas formas, suas disposições na página, a relação que mantêm auxiliando umas às outras e, às vezes, até competindo entre si. Sim, eu amo os livros que guardam as palavras, amo as palavras que guardam os conhecimentos, os conhecimentos que guardam sentimentos...
            Tudo bem, confesso que guardam sentimentos, muitos sentimentos, mas sei também que nunca serão o suficiente. Ainda assim eu as busco, seja nos diferentes sentires das fases da vida de Drummond, sejam nas sensações que causam, ao ler Pessoa, de que em algum lugar do mundo, em um momento qualquer no tempo, alguém pensou (pensa) como eu. Sei que inevitavelmente buscarei as palavras o resto de minha vida.
            Ainda assim, com todo o amor que nutro pela palavra, não tenho pretensão de me armar da pena, não me atrevo a lutar pela causa que defendem, nem vou me submeter a uma trégua.
            Deixe-me permanecer à margem, habitar uma orelha de livro, ou apenas observar a guerra que as palavras travam, pois na eterna luta das letras a maior vítima é sempre o autor.

Cristiane Neves
05/04/03
01:55

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Soneto a Baco



Tu, que enlouqueceste por culpa de inveja inimiga;
Tu, que foste gerado fora do ventre materno;
Tu, que de intrigas foste o alvo eterno;
Apresenta-me agora esta tua paixão tão antiga.

Ametista perfumada, delicioso líquido!
A coloração distinta cativa o olhar sedento,
Para todas as feridas, ele é o unguento
Cura a alma, emenda o coração partido.

Ó, Baco! Já é hora de ascenderes ao trono!
Seja bem vindo, Lorde Imortal!
Ergueste enfim de teu eterno sono!

Viva a beleza do grande Bacanal!
As bacantes há muito aguardam teu retorno.
Diante do vinho, o que importa a moral?


Cristiane Neves
05/04/09
12:33 - AM

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Noite




À noite vou me deitar. O lençol limpo e esticado sobre o colchão macio. O perfume do amaciante, o conforto e o calor do cobertor me protegendo do inverno. O escuro do quarto me promete um sono tranquilo que não vem. Um frio envolve não meu corpo, mas minha alma. Estou só. A cama de solteiro é imensa e eu, pequena, encolhida, não ouso me mexer.
Do andar de cima vem os sons de um casal se amando. Se amando ou brincando? Amor, paixão, diversão, passatempo... O que importa o nome? Eles estão juntos, cheios de gozo e eu aqui, com a angústia como única companheira.
Lembranças do passado brincam em minha mente. Um turbilhão de potenciais não cumpridos, de chances perdidas, possibilidades que deveriam ter sido mas mal chegaram a ser concebidas. Penso também no futuro. Por quantas outras portas eu passarei sem abrir, sem sequer ter coragem para espiar pelo buraco da fechadura?
A idéia do não existir também chega até mim. O não ser que não é nem alívio, nem tranquilidade, é só o nada. O vazio, o vácuo, o inconcebível. A morte? Não. A morte implica uma existência, ainda que passada, e sabe-se lá o que vem depois dela.
Mas eu existo (penso?), sou (qual a questão?). E aqui, no quarto escuro, sozinha a pensar na metafísica do mundo que não compreendo a sua imagem vem até mim. E começo a me lembrar não do que foi, mas do que é, da física que compreendo tão bem.
Quase posso sentir o toque de sua boca macia e o gosto da sua lingua (goiaba?). Seus braços me envolvem e suas mãos correm por todo o meu corpo. Finalmente me aqueço com o calor que emana de você. Mas abro os olhos e tudo é escuridão, e tudo é vazio. Viro-me na cama me aconchegando mais ao cobertor e rezo para que Orfeu me traga o sono tranquilizador.

Cristiane Neves
04/06/2006