terça-feira, 27 de julho de 2010

JUIZ DE FORA – CARATINGA




     Feriado! Tempo de descansar, passear, voltar para casa. Entro no ônibus e sento em uma poltrona torcendo para que ninguém se sente ao lado. Minha esperança se vai quando um homem ocupa a cadeira vazia. Recebo uma mensagem de meu irmão no celular e o respondo. Depois, pego o xerox de um texto do Barthes que devo ler para segunda-feira (eu disse algo sobre descansar?). Pensava estar embarcando em uma viagem interurbana. Tratava-se, na verdade, de uma viagem intrapessoal que em nenhum momento se tornou interpessoal.
     Estamos talvez assistindo a um declínio das relações sociais como as conhecemos. Isso eu posso perceber claramente aqui mesmo, no ônibus. Cada um se atém a seu lugar determinado: uma cadeira, um número (janela ou corredor?). Bom, pelo menos o homem urbano-pós-moderno se submete a isso, acostumado à individua-lidade e a pequenos espaços: apartamentos, escritórios, elevadores... Ele se acomoda em seu lugar delimitado pelos braços da poltrona.
     Uma mulher chora lá atrás. Diz entre lágrimas, contendo a voz para que não saia mais que um sussurro soluçante: “Cachorro, seu cachorro... galinha”. Mas os filhos do ambiente urbano industrial agem como se nada ouvissem, surdos às lágrimas alheias, mudos às suas próprias.
     Há ainda no ônibus pessoas livres. Vivem em lugares amplos, numa imensidão de céu e campo. Estes descansam sob a silhueta que as árvores lançam sobre o capim. Os urbanos, por sua vez, vivem à procura de um fio de luz entre as gigantescas sombras que os prédios projetam e engolem as ruas lotadas de seres vivos e máquinas.
     Mas os livres habitantes da natureza não cabem nessa caixa de metal com rodas. Por isso eles se expandem para além do espaço reservado a eles. Comunicam-se, contam seus dramas, ouvem o choro e o comentam. Não são indivíduos simplesmente. São persona-gens cada vez mais raros que sabem conjugar a sua própria individualidade, sua personalidade, sua identi-dade, com a coletividade.
É um paralelo curioso a se traçar, uma ironia mesmo, que aqueles que vivem em espaços amplos, cercados mais pela natureza que pela humanidade, sejam mais envolvidos em relações interpessoais (não só com velhos compadres, mas também com totais desconhecidos), enquanto que o homem tecnológico, sempre cercado de outros homens, em cidades com centenas de milhares, até mesmo milhões de habitantes, se afaste sempre mais (à proporção do aumento da população) dos outros de sua espécie.
O homem a meu lado brinca com o celular. Mais uma ironia da pós-modernidade com sua tecnologia. O objeto que deveria unir as pessoas no prazer da comunicação, prende esse homem ao mundo virtual.
Ah! O mundo virtual! Eis aí material para grandes discussões. É a esse espaço inexistente fisicamente que o produto racional das cidades busca agora para poder expandir suas relações pessoais e saciar sua necessidade intrínseca de se comunicar. As ruas não são mais seguras e a vida segue um ritmo alucinante que mal cabe nas 24 horas do dia. Assim a solução é buscar o não-espaço e o não-tempo. E o que nos falaria o poeta Baudelaire desse flâneur pós-moderno? Diria ele que este homem não estaria somente buscando o não-tempo e o não-espaço, mas ficando preso a um não-sabor, um não-tato, um não-cheiro, enfim, uma não-vida?
O fantasma de Chaplin em Tempos Modernos grunhe a meu lado e me traz de volta ao ônibus. Ele está revoltado, pois a serpente bateu na parede da tela e morreu. TOTAL DE PONTOS: 948. O recorde não foi batido, o jeito é recomeçar o jogo. Percebo, então, que eu também estou presa a uma não-comunicação (maior vergonha a uma profissional da área), enquanto me concentro em meu escrito, trêmulo pelo sacudir do ônibus, vacilante ao rodapé de Barthes.
E então aqui estou! Filha do progresso e feliz por isso. O critico, mas não o nego. Eu que também estou atenta aos momentos em que meu celular recupera o sinal, sei que minha natureza é a não-natureza. Muito de meus iguais ainda tentam negar a si próprios, trocar de pele e adotar o campo. A grande maioria não consegue. Os que se adaptam, deve ser por algum defeito de fabricação, erro de programação.
O homem guarda o celular e resolve tentar dormir. A mulher já se acalmou faz algum tempo e um adolescente no banco de trás ouve diskman a uma altura que de onde estou consigo reconhecer a música: Unforgettable. Lá fora as galinhas ciscam no quintal. O ônibus segue viagem.


Cris Neves
14/11/2002

terça-feira, 20 de julho de 2010

O Diálogo




O cenário é um bar cheio. Duas mesas de sinuca onde pessoas menos bebadas ganham das que já tomaram uns copinhos a mais. Amigos reunidos conversam, fofocam, namoram nas mesas espalhadas pelo ambiente. Em uma delas Ela está entediada, segurando vela para a amiga que, neste momento, parece estar usando a própria língua para contar os dentes de alguém que acabou de conhecer.

Um Cara se aproxima. Um Cara a acha atraente e a aborda. Ela está feliz com a iniciativa. Um Cara é bonito. O diálogo tem início:


Um Cara: Posso te conhecer?

Ela: “Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!”

Um Cara: Ah, mas eu tô aqui, gatinha? Qual o seu nome?

Ela: “O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria.
Deram então de me chamar
Severino de Maria”

Um Cara: Severino de Maria? Que doido! Então, mas cê é daqui mesmo?

Ela: “Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?”


Um Cara coça a cabeça tentando compreender.


Um Cara: Viveu aqui e voltou? Xô ver se entendi: cê é daqui, mas não mora mais aqui... Tá visitando, então? E o que tá achando do lugar?

Ela: “Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.”

Um Cara: Cê fala muito esquis..., digo, diferente. O que você faz?

Ela: “Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.”

Um Cara: Poeta? Então tá explicado... Eu não entendo dessas coisas não. Sabe o que eu adoro? Surfar! Sempre que posso dou um pulo no litoral. Você curte pegar onda?

Ela: “a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda”

Um Cara: Ow, o que cê fumou, garota?!? Viajou bonito agora!

Ela: “Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrelas,
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso...”

Um Cara: Namora estrelas? Tá doida?

Ela: "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso"! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.”


Momento de silêncio constrangedor.


Um Cara: Hã, meu amigo tá me chamando ali. Tipo, depois a gente se fala mais, então...


Um Cara se afasta. Ela suspira e volta a encarar o copo de cerveja sobre a mesa. Algumas mesas atrás, mais ao fundo do bar, Ele a observava. Ouviu partes da conversa. Interessou e agora aproxima-se  d’Ela.


Ele: “Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. –
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...”


Os olhos d’Ela brilham.


Ela: “E eu vos direi: "Amai para entendê-las:
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”


Falavam a mesma língua e continuaram a falar até que um dia a morte (angústia de quem vive) ou a solidão (fim de quem ama) os procurou.

FIM

Cristiane Neves
15/07/10
1:28

terça-feira, 13 de julho de 2010

Fumaça




O mundo não é um sonho, é paupável, visível. Ele está à minha volta com todas as suas formas, cartazes políticos, casas antigas, vitrines iluminadas e igrejas (Deus espia pelos vitrais, anotando quem faz o sinal da cruz, pois a esses será permitido entrar em sua casa).
A minha idéia de mundo que não é real. Mas também não é sonho. É fumaça impossível de se conter, escapando por meus dedos para as camadas mais altas da atmosfera. E esse mundo nunca será tangível, para que eu possa fazer parte dele.
Enquanto isso eu ando pelas ruas da cidade numa agradável noite morna. Minha vontade era sentar na calçada, sentir o calor de suas pedras. Mas eu não posso, tal como não posso subir no banco da praça e cantar bem alto, liberando toda a energia armazenada e sem escape, sentindo as carícias da brisa fraca que carrega meu canto.
Eu não posso e ninguém pode. Todos querem, mas ninguém o faz. Calam-se ante as (in) conveniências da sociedade. Exceto os loucos. Eles se livram das amarras morais para cairem nas amarras das camisas de força.
Eu ando e sinto através de meus sapatos as pedras da calçada. Elas estão lá, são reais, sólidas e crueis. Aterrorizantemente crueis.

Cristiane Neves
22/08/04

terça-feira, 6 de julho de 2010

Ilegal, imoral ou engorda




“Quer fazer Deus rir? Conte a Ele seus planos para o futuro.”
Woody Allen

“Vivo condenado a fazer o que não quero
Então bem comportado às vezes eu me desespero
Se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer
Que isso ou aquilo não se deve fazer

Restam meus botões...
Já não sei mais o que é certo
E como vou saber
O que eu devo fazer
Que culpa tenho eu
Me diga amigo meu
Será que tudo o que eu gosto
É ilegal, é imoral ou engorda

Há muito me perdi entre mil filosofias
Virei homem calado e até desconfiado
Procuro andar direito e ter os pés no chão
Mas certas coisas sempre me chamam atenção

Cá com meus botões...
Bolas eu não sou de ferro
Paro pra pensar
Mas não posso mudar
Que culpa tenho eu
Me diga amigo meu
Será que tudo que eu gosto
É ilegal, é imoral ou engorda

Se eu conheço alguém num encontro casual
E tudo anda bem, num bate papo informal
Uma noite quente sugere desfrutar
Do meu terraço, a vista de frente pro mar
Mas a noite é uma criança
Delícias no café da manhã

Então o que fazer
Já não quero mais saber
Se como alguma coisa
Que não devo comer
Se tudo que eu gosto
É ilegal, é imoral ou engorda”

Ilegal, imoral, ou engorda - Roberto Carlos / Erasmo Carlos


            Mariana tinha 30 anos de idade e sua vida estava estabilizada. Um emprego que gostava, um marido que amava e que lhe correspondia todo este amor, e, para completar a felicidade familiar, um bebê seria gerado. Depois de três anos casados,  eles chegaram à conclusão de que era o momento certo de dar mais este passo no grande esquema da existência. A mãe de Mariana já havia concordado em se mudar para perto da casa da filha, a fim de ajudar com o neto ainda não concebido. Era um futuro que se apresentava promissor, cheio de alegrias vindouras e muitas experiências novas a serem vividas.
            Em uma quarta-feira qualquer, a surpresa. Mariana estava trabalhando na escola em que dava aulas. Começam as dores de cabeça e, subitamente, vem um desmaio. A professora é levada às pressas ao hospital. Na quinta-feira ela não mais existia. Um aneurisma cerebral, irregularidade em uma artéria do cérebro, se rompeu. Um mal silencioso, súbito. A morte se aproximara, de mansinho, nas sombras, e ninguém notou.
            Existem milhares de “Marianas” no mundo. De um momento para o outro tem suas vidas ceifadas, ou severamente modificadas. Infartos fulminantes, acidentes de automóvel, balas perdidas, violência gratuíta, situações imprevisíveis, que podem nos tornar paraplégicos, tetraplégicos, vegetais, nos colocar em coma, nos matar...
            A vida é muito mais frágil do que nos damos conta; o futuro, muito mais incerto; e as verdades muito mais instáveis. Situações como esta nos fazem lembrar daquela máxima em latim “Carpe Diem”. Colha o instante, aproveite o dia, o momento. Não pense tanto, não se preocupe com pouca coisa, não faça tempestade em copo d’agua. Não faça hoje o que pode deixar para amanhã, e o que deixou de fazer ontem, aproveite agora.
            Tantas coisas frívolas ocupam nossas mentes no dia a dia...

            “Quantas calorias tem este sanduíche?”
            “Será que vou conseguir aquela promoção?”
            “Não tenho o que vestir!”
“Ele me ama? Eu o amo?”
            “Meu marido não me enxerga mais!”
            “Devo ou não devo?”
            “Meu cabelo está horrível!”
            “Minha namorada não me compreende!”
            “O que os outros vão pensar?”
            “Quero um carro novo!”

..................

            As queixas e as dúvidas não têm fim. É sempre aquela preocupação com o que é certo e errado, que é mais uma preocupação para com os outros do que para com si mesmos. Tomam a verdade como algo único, uniforme, atendendo a toda a gente simultaneamente. Mas não é assim que funciona. Cada caso é um caso. Cada vida, uma vida. Para cada pecado, uma absolvição.
            Não se pergunte as calorias do sanduíche. Se vai comê-lo, saboreie, e depois, dê um jeito de queimar as gordurinhas acumuladas. Não questione se ele te ama. Ame-o. Aproveite cada momento junto dele, e o que tiver de acontecer, acontecerá. Não se pergunte sobre o que os outros vão pensar. Ignore-os. O que quer que seja, logo será assunto antigo, deixado para trás. Já você ser verdadeiro consigo mesmo, isso você levará junto de si para o resto de sua frágil vida.
            Ficar triste e lamentar é natural, mas que não nos mantenhamos presos a estas lamúrias. Antes de ficar perdido em dilemas, viva a vida. Aja. Faça acontecer. Se tudo o que você gosta é ilegal, imoral ou engorda, ao menos de vez em quando ceda à tentação, se presenteie momentos de prazer, pois o futuro a Deus pertence, e sabe-se lá o que pretende fazer com ele...

Cristiane Neves