terça-feira, 25 de maio de 2010

Formigas




Estava bebendo vinho. É sempre bom beber vinho tarde da noite, sozinha. Se você bebe cerveja à noite, sozinho no escuro, é patético, se bebe caçacha, você é um bebado desprezivel, mas se é vinho, então você tem estilo, é chique, ainda que triste, patético e solitário como nas outras opções.
Então, como dizia, estava bebendo vinho, sozinha, no escuro, e me deu uma grande vontade de quebrar a taça que segurava. Não que tivesse bebido tanto, uma taça  e meia até o momento, mas aquele desejo de destruição não me abandonava.
Primeiro pensei em lançar a taça pela janela, vê-la se espatifar dois andares abaixo, o rosto das pessoas se voltando para cima, afim de ver o que havia “derrubado” o copo. Mas não, aquilo não serviria. O que queria realmente era pegar a taça fina e esmagá-la em minha mão. Seria fácil. Os pequenos cacos de vidro penetrariam em mim, eu sangraria, sentiria a realidade do fim daquele cristal em minha propria pele. Tive de me perguntar por que queria tal coisa. Era a dor que eu precisava sentir? Será que necessitava que a realidade me batesse na cara para provar que eu ainda existia?
Não, era mais a sensação de poder. Queria ver que eu podia quebrar aquele vidro se quisesse. O fato era que, uma vez quebrada, a taça estaria dividida em pequenos pedacinhos, impossiveis de serem reunidos. Era algo irremediavel. Eu sabia que, uma vez feito, não poderia ser desfeito e era isso que eu queria.
Me lembrava de um acontecimento durante as ferias de verão. Eu devia ter uns cinco anos de idade, ainda aprendendo o beabá. Estava brincando na calçada de minha casa. Era o fim da tarde. Ainda não havia escurecido e o concreto emanava um calor ao mesmo tempo gostoso e sufocante. Eu observava como as formigas carregavam as folhas do mato que cismava em crescer independente do asfalto. Elas seguiam em filas muito mais organizadas que as de nossos passeios de escola. Foi naquele momento que, pela primeira vez, percebi aqueles bichinhos como seres vivos. Vi que eles faziam parte de uma comunidade, que interagiam. Conectei-me com aquelas criaturinhas. Elas respiravam como eu.
            Eu não podia relacioná-las com os desenhos animados, pois sabia que eles eram menos que fantasmas, eram apenas faz de conta. Sendo assim, não podia comparar a formiga atômica com aqueles seres que tinha diante de mim. Acho que, em meu subconsciente, todo o resto do mundo, à parte de mim mesma, não passava de cenário. É assim quando somos crianças, somos muito egoistas. Já temos dificuldade em nos descobrir, quanto mais em descobir que outras pessoas existem. Outras espécies então, impensável. Não passavam, talvez, de animais fofinho que queria apertar, ou bichos nojentos dos quais queria fugir. Enfim, aos cinco anos de idade, me dei conta da existência da formiga como coisa real.
            Debruçando-me sobre a fila de formigas, estiquei meu dedo e esmaguei uma delas. A que carregava a maior e mais verde das folhas. Fiquei observando as outras formigas se desviando e seguindo o caminho. Aquela formiga estava morta e nada poderia trazê-la de volta. E aquela foi a primeira lição que aprendi ao perceber que havia outros seres além de mim mesma. A lição sobre poder.
Eu tinha poder sobre a vida e a morte daquelas criaturinhas trabalhadoras. Mas a segunda lição não tardou a vir: o remorso. Percebi que o que havia feito era irremediável, sabia que havia tirado uma vida e nada poderia trazê-la de volta. Não posso descrever a tristeza que senti. Não foi daquele tipo em que a gente desaba em choro (aliás, nunca fui de “desabar em choro”), foi o tipo de tristeza que cria um nó na garganta, uma revolta no estômago e um aperto no coração. É por isso que  a memoria permanece, 20 anos depois. É por isso que, apesar de fazê-lo, ainda me sinto mal ao matar uma barata. E é por isso, creio eu, que queria quebrar a taça. Para repetir a sensação do poder irremediavel que senti naquela tarde de verão.

Cristiane Neves
11/04/07

PS: Eu não quebrei a taça. Temo o irremediável.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Idolatria



Tenho na ponta da lingua os nomes de meus poetas favoritos. Tão diferentes em seus estilos e temáticas que cada um deles me atende de forma diversa, dependendo do que estou sentido, do que quero expressar e não sei como.

Porque é para isso que os poetas e os grandes escritores existem. Eles sabem traduzir em palavras os sentimentos que não reconhecemos e os pensamentos que não conseguimos organizar. E o fazem com tanta maestria que tornam até os sentimentos ruins, as histórias tristes, as imagens feias e as realidades mais brutais em belas obras de arte, perfeições estéticas e estilísticas até quando, contraditoriamente, tentam se afastar de perfeições, estéticas e estilos. Como exemplo, cito Vinícius de Moraes. A grande estética de seus sonetos trazem sonoridade aos temas mais dolorosos.

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
(Soneto de Separação – Vinicius de Moraes)

Em busca desta beleza e compreensão, dependendo de como me sinto, recorro a um de meus autores favoritos. É como escolher a roupa que se vai vestir. Você abre o guarda-roupas, olha as opções, pensa se está frio ou quente, se chove ou faz sol, pondera sobre o local de destino e o que seria apropriado e diante destes fatores escolhe a vestimenta. O mesmo acontece com a poesia.
Se me sinto irônica e desiludida, querendo jogar a verdade na cara do mundo, cansada das convenções sociais, recorro a Manoel Bandeira:

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
(Poética - Manoel Bandeira)

Ele foi mestre se superando física e literariamente. Que bom que a Dama Branca demorou para chamá-lo e levá-lo a Passárgada, pois assim temos uma vasta obra para qual recorrermos.

Se, no entanto, encontro-me lúgubre, triste, fatalista e irremediavelmente romântica, Álvares de Azevedo, o jovem eterno, herói de todos os adolescentes, se torna então meu mestre. Ele me fala dos mistérios do mundo e deste desejo em ter o inalcançável.

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
(Adeus, meus sonhos! – Álvares de Azevedo)

Do inalcançável também me falou um português que viveu há meio milênio atrás. Feio, cego de um olho, o patriota soldado Luís de Camões sabia descrever o amor como ninguem, principalmente aquele platônico, que ao mesmo tempo alimenta e tortura o espírito.

Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
(Luís Camões)

Destaco agora uma poetisa que, por seu sexo, é a que melhor traduz o que se passa dentro da mulher quando apaixonada. Em seus poemas encontro exemplos para quando me deparo com felicidade, tristeza ou rejeição, saudades, orgulho... Ela fala até das contradições femininas.

Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.
(Confissão - Florbela Espanca)

Por sua admirável compreensão da alma feminina, volto a citar aqui Vinicius de Moraes. Ele não se destaca apenas pela grandiosidade em cantar a realidade do amor, pregando sua eternidade perecível. Também o adoro pelos diversos momentos em que se mostrou profundo conhecedor do modo de pensar e agir das mulheres, de forma a saber exatamente o que fazer para agradá-las.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor. (Para viver um grande amor – Vinícius de Moraes)

E quanto ao maior de todos os poetas brasileiros? É claro que Carlos Drummond de Andrade não poderia faltar em minha lista. Um poeta que viva por muito tempo e presencie tantas mudanças sociais como ele está fadado a ter fases diferentes em sua poética. Desde seu princípio modernista e pessimista, ainda na década de 30, até chegar nos anos 70 e 80, tão saudosista, o mineiro nos presenteou com incríveis provas do que o talento e a criatividade do homem podem alcançar. Ainda em 1930 o bardo já falava de suas diferentes faces, terminando o poema com ironia maestral.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(Poema de Sete Faces – Carlos Drummond de Andrade)

E mesmo depois de morto o poeta seguiu a surpreender pela descoberta dos poemas eróticos que compôs ao longo da vida e nunca publicou.

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
(A Bunda, que engraçada – Carlos Drummond de Andrade)

Mas dentre poetas de inúmeras faces nenhum supera Fernando Pessoa. Meu favorito, o mais completo, o mais complexo, o mais eu. Principalmente na pessoa de Álvaro de Campos e toda sua metafísica (ou falta dela), Pessoa soube como ninguém traduzir meus pensamentos, sentimentos, filosofias.

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
(Lisbon Revisited (1923) - Álvaro de Campos)

E é por ter acesso, por conhecer, por me encontrar nos textos destes gênios que uma folha em branco (ou novo documento no word) me assusta tanto. Como ter a coragem de elaborar um texto quando outros tantos já disseram o mesmo e tão melhor do que eu? Por que este esforço inútil?

E ainda é triste perceber que o que conseguimos passar para o papel nunca é o que sentimos, jamais alcançamos a transcrição completa do que se passa dentro de nós. Esta corrente que une sentimentos e palavras é falha, faltam elos que nunca serão encontrados.

Lembrar-me que até este questionamento já foi levantado por meus ídolos frusta ainda mais, mas ao mesmo tempo traz aquele conhecido consolo em ter pares neste mundo.

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!
(Tortura - Florbela Espanca)

Para encerrar este desabafo citando o meu favorito, lembro que não é apenas o fato de não conseguirmos transmitir tudo o que queremos que é triste. Uma vez escrito o texto, o leitor fará uma leitura que se interpreta pelo que ele próprio sente. Esta interpretação, assim, deixa de ser aquilo que o autor conseguiu colocar no papel e se dista ainda mais do que ele desejava externar. Por isso Florbela mente, por isso Pessoa finge. E eu sigo com eles.

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
(Autopsicografia – Fernando Pessoa)

Cristiane Neves
12/05/10
02:34

terça-feira, 11 de maio de 2010

Hopeless


-->

Never to lie, never to die
Never to feel, never to heal
See the fate of mankind
And yet no purpose find

Future, present, past
Always moving way too fast
All for nothing, forever rotten
Failure or fortune, all forgotten

Never to lie, never to die
Never to feel, never to heal
See the fate of mankind
And yet no purpose find

Science and art,
Both fall apart
Before the stupidity
Of all might infinity

Never to lie, never to die
Never to feel, never to heal
See the fate of mankind
And yet no purpose find

Love and faith, hope and hate
Useless feelings, gone too late
Friends and foes are the same
All willing to play The Game

Never to lie, never to die
Never to feel, never to heal
See the fate of man kind
And yet no purpose find

Cristiane Neves
2008



terça-feira, 4 de maio de 2010

O Humor do Amor




O Amor tem um humor cruel
A cada dia nos prepara uma jogada
Surprendendo até seu fã mais fiel
Perde o amigo, mas não perde a piada!

Ele é seco, sarcástico, rude e irônico.
Sádico, vive de rir-se da dor da gente!
Seja ele o amor carnal ou platônico,
Não há aquele a quem não atormente!

Sem a mínima educação, chegar sem avisar,
E, quando indesejado, Amor sempre se demora,
Puxa cadeira e se põe logo a conversar...
Mas se querido, sem palavra, já vai embora.

Ah, quem dera poder compreender
O porque de tão estranho humor
Que ri da desgraça! Sentes prazer?
Por que és tão mau, Amor?

Cristiane Neves