terça-feira, 27 de abril de 2010

Platonismos Platônicos I


Ou de como o Mito da Caverna se torna realidade 



Eu quis cantar minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
(Panis et Circense – Mutantes)

Platão tinha o mito da caverna. A pessoa depois que adquiria a luz do conhecimento não conseguia viver mais nas trevas da ignorância e tentava trazer outras pessoas para a luz. É uma idéia interessante, mas às vezes a luz é um saco. Às vezes dá vontade de arrancar os olhos como Édipo, ou pelo menos colocar um bom par de óculos escuros ou ainda retornar à escura simplicidade aconchegante de dentro da caverna. Continuar assistindo ao show de sombras projetadas na parede e se satisfazer apenas com elas, como a esmagadora maioria das pessoas.
        Tanta gente é feliz vivendo em ignorância. Têm uma existência completa, não sentem falta de nada. Não podem sentir falta do que nunca tiveram, do que não conhecem. E assim os dias vão se sucedendo, e a ordem imutável das coisas permanece como sempre. Nascem, crescem, reproduzem e morrem. E a naturalidade de tudo isso é reconfortante e assustadora.
Somos homo sapiens sapiens. Espécie racional e mais inteligente da face da terra (ainda que Douglas Adams discordasse). Mas temos de discutir se a tão sábia seleção natural deu bons resultados. O que nos trouxe toda a inteligência alcançada? Vivemos mais. Realizamos milagres de ciência e tecnologia. Produzimos artes. Criamos religiões. Tudo isso para que? Como isso nos torna melhores do que cães e gatos e ornitorrincos e piolhos e lesmas e baiacus?
Não, não somos melhores que estes seres. A vida deles sim é natural, não interferem com o todo como nós fazemos. Estas criaturas estão em sintonia, interligados com o mundo. Já o homem é um animal que se afastou de seu planeta. Não faz mais parte dele, o superou, vendo-o de cima, dominando-o, o usando como se fosse descartável. Tudo produto dos “avanços” que a inteligência dos homo sapiens tornou possivel.
Em um certo momento na historia duas espécies de primatas muito semelhantes conviveram simultaneamente. Eram os neandertais e os cro-magnons. Os primeiros eram pequenos mas robustos. Tinham a inteligência limitada apesar do cérebro maior. Os cro-magnos eram mais altos e esguios. Fisicamente eram inferiores a seus “primos”, mas a inteligência os permitiu desenvolver tecnologias que os levou para além da era do gelo. Os neandertais foram extintos. Os cro-magnos continuaram evoluindo e chegaram a nós.
Pergunto-me se não teria sido melhor se os neandertais tivessem sobrevivido ao periodo glacial, e os cro-magnos perecido. Talvez estes baixinhos pré-históricos nunca desenvolvessem a inteligência que possuimos hoje e a existência seria melhor. A existência sem a noção de existência. Existência sem existencialismos, transcedentalismos, metafísicas, ou semelhantes. Seria apenas o nascer, crescer, reproduzir e morrer da forma mais simples possivel para TODOS nós.
Mas não. Em algum momento no tempo o último neandertal morreu, sem saber que consigo terminava sua espécie. Os cro-magnos superaram o passar dos tempos e nós surgimos. E pensamos e criamos e filosofamos. E ainda assim a maioria das pessoas se recusa a pensar e criar e filosofar.
Neste meio tempo, nós, poucos verdadeiros herdeiros da cruz dos cro-magnos, mergulhamos na luz exterior, mas precisamos voltar com frequência para dentro da caverna. Fora dela o espaço é amplo. As poucas pessoas que conseguem sair da caverna se perdem umas das outras, ficando dispersas no grande espaço exterior. Por isso o retorno necessário à escuridão, a fim de encontrar outras pessoas.
Pois é, aí está outro fator. O homem é um animal social por natureza, o que impôs um dilema: Ficar sozinho na luz ou acompanhado nas trevas? A opção de tentar guiar as pessoas para fora da caverna é árdua, como platão colocou, mas ainda assim esta seria a única esperança em uma existência cheia de existencialismos, transcedentalismos, metafisicas e semelhantes.
Então aqui estou eu. Deixe-me mostrar-lhes a luz. Há mais na vida do que as futilidades cotidianas em que tão facilmente mergulhamos. Deixemos de nos contentar com as meras sombras, tão insubstanciais, tão inatingíveis, tão irreais. O caminho é dificil. A saída da caverna é ingreme. É preciso subir por muito tempo, com grande esforço, mas uma vez alcançada a luz, poderemos todos nos encontrar lá fora, e ver-nos pela primeira vez como realmente somos.

Cristiane Neves
26/07/09
14:24

PS: Este texto tomou vida própria. O tema que seria tratado aqui originalmente será discutido em Platonismos Platônicos II. Eis um exemplo de como o escritor é mero instrumento das musas. “Penetra surdamente no reino das palavras, lá estão os poemas que esperam ser escritos” – Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 20 de abril de 2010

Baile de Máscaras




            Todos usamos máscaras, temos uma para cada situação. Não é que ao colocá-las deixamos de ser nós mesmos, elas apenas representam diferentes partes do todo que somos, os muitos fragmentos dentro de um mesmo.
Eu já não sei quem sou por inteiro. Para descobrir tento ver-me através das outras pessoas. Grande fracasso. Tudo o que me revelam é alguma interpretação equivocada da máscara que vêem. E eu deturpo mais ainda as visões delas, tentando ultrapassar suas próprias máscaras para ali finalmente poder ver meu retrato de corpo inteiro.
O espelho também não diz quem sou. Na frente dele permaneço de máscara. Pergunto-me se ainda existe um rosto por baixo. Eu saberia reconhecê-lo se o visse?
Enfim busco as respostas em mim mesma. Dentro de mim os meus fragmentos conversam, cantam, se cumprimentam, dançam, se amam, brigam... E aqui fora as máscaras se sucedem a uma velocidade vertiginosa.
Tento juntar os fragmentos em um grande quebra cabeça, mas eles escapam de minhas mãoes, e fogem, e desaparecem, e surgem de novo, e não se encaixam, e riem de minhas tentativas frustradas de uní-los.
Já amanheceu. Lá fora ainda escuto as gargalhadas e os choros de meus fragmentos. Abro o baú, escolho uma máscara e saio.

Cristiane Neves
2004

terça-feira, 13 de abril de 2010

Era uma vez...



        Toda menina quando pequena assiste aos clássicos da Disney, baseados em histórias centenárias. Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida. Histórias em que as princesas em perigo são salvas por príncipes em cavalos brancos. Mesmo com Shrek mudando o modo de vermos os contos de fada, mesmo as princesas se tornando personagens mais fortes, como a Jasmim de Aladin, mesmo assim, um fato se mantem: o principe e a princesa superam todas as adversidades e ficam juntos no fim, felizes para sempre.
        Quando adolescentes mudamos um pouco nosso entretenimento. Não são mais desenhos animados, mas sim filmes de sessão da tarde e séries especificamente voltadas para os dramas da puberdade. Nos anos noventa eu tive Dawson’s Creek. Hoje acho que os jovens se voltam para Hannah Montana e Jonnas Brothers, não sei. O que sei é que, no fim, sempre temos a mesma mensagem de que os romances funcionam. Mesmo em Dawson’s, que eu citei, tudo bem que a Joey e o Dawson não ficaram juntos no final, mas ela terminou com o Pacey que, convenhamos, era muito mais interessante.
        Com este exemplo do Payce já começo a entrar em um assunto que quero discutir. Payce era o Bad Boy que um dia se apaixona pela mocinha e vê seu mundo de pernas para o ar. Por fim se transforma, assume o amor que sente, fica com a mocinha e todos vivem felizes para sempre.
        Dos desenhos animados da infância, para os seriados da adolescência, alcançamos, enfim, as comédias românticas ao entrarmos na vida adulta. Princesas em perigo e jovens mocinhas conhecendo as dores do primeiro amor se transformam em mulheres de sucesso sendo arrebatadas pelo cara errado. São estas ficções que se apresentam para que possamos fugir da mesmice do dia a dia.
        Hoje as comédias românticas são garantia de sucesso. Orçamento baixo, atores bonitos e carismaticos, roteiro engraçado e final feliz. A receita de alta bilheteria. Os Chick Flicks, como os americanos chamam, são voltados para as mulheres, milimetricamente engendrados para que possamos nos projetar e durante uma hora e meia, duas horas, viver uma "bela e divertida" história de amor.
        Nos emocionamos. Rimos das situações. Temos raiva da dupla que simplesmente não percebe que são perfeitos um para o outro. Prendemos a respiração naquele segundo antes do tão antecipado beijo. O close no rosto do casal, as bocas próximas mas ainda não se tocando, a música criando o clima do momento. E todo este tempo nossa respiração suspensa. Depois o alívio. Eles se beijaram. Vão ficar juntos. Viverão felizes para sempre. Fim.
        O problema é quando a tela escurece e os letreiros começam a subir. Nas inocentes animações de nossa infância acreditamos que magia existe, que fadas madrinhas são reais e podem nos visitar, e nunca questionamos o felizes para sempre. Na adolescência começamos a ter duvidas. As coisa não parecem acontecer como deveriam.
        Na idade adulta temos certeza. Nossos príncipes encantados não são mais cavaleiros montados em alazões com armaduras reluzentes. Nós queremos o Bad Boy com coração de ouro, mas agora sabemos a diferença entre realidade e o faz de conta. Quando as luzes do cinema se acedem e a catarse tem fim, a frustração chega em ondas. O príncipe não existe.


Cristiane Neves
27/09/09 – 23:22

terça-feira, 6 de abril de 2010

O intelectual

 


A mãe de Alfredo sempre afirmou que ele já nasceu inteligente. Dizia ela que quando estava grávida não teve desejo de comer alimentos estranhos, mas devorou livros, contribuindo desta forma para a inteligência de seu filho. “Foram lições intrauterinas” – brincava a orgulhosa genitora.
Já o pai discordava. Ele afirmava que o intelecto superior de seu filho se devia à música clássica. Durante os meses de gestação, ele colocava Mozart para tocar, as caixas de som apontadas para a barriga inflada da esposa.
Não eram apenas os familiares que disputavam o crédito para o prodígio de Alfredo. A madrinha, uma amiga da família, jurava de pés juntos que os brinquedos educativos, presenteados ao pequeno desde seu nascimento, permitiram que ele desenvolvesse mais seus neurônios. Já sua primeira professoa, Tia Ana, alegava que o incentivo ao estudo em sua sala de aula é que trouxe o gosto pela leitura ao aluno.
Independente de quem tenha dado o pontapé inicial para o desenvolvimento mental superior de Alfredo, o fato é que desde muito jovem já demonstrava uma visão diferente de mundo.
Aos três anos de idade já sabia ler e fazer contas simples. A precocidade de seu aprendizado continuou ao longo da idade escolar. Apesar disso não pulou nenhuma etapa, pois fazia questão de passar por todas as séries, mesmo diante da insistência de alguns professores em adiantá-lo pelo menos um ou dois anos.
Curioso que, apesar de compreender bem as ciências, desde cedo ficou claro que Alfredo se interessava muito mais pelas artes. E com todos a sua volta o estimulando, o pequeno gênio achou que era normal uma criança de 7 anos saber quem eram Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Alexandre Dumas e Manoel Bandeira.
As diferenças entre ele e seus colegas de classe se notavam no dia a dia. Enquanto os amigos folheavam revistas em quadrinhos, vibrando com as cenas de batalha, Alfredo não conseguia deixar de notar o erro na projeção da luz e sombra, a desproporcionalidade entre a cintura das personagens femininas e  suas cabeças, ou ainda problemas de continuidade de um quadrinho a outro. Certo dia vendo nas mãoes de um colega uma Graphic Novel cuja arte lhe agradara, comparou com As Três Banhistas, de Cézanne, e mais uma vez se admirou que os amigos não conhecessem o famoso pintor francês.
Foi desta forma que desde cedo Alfredo percebeu que era peculiar e aprendeu a se controlar diante das pessoas. O tempo passou, ele cresceu, entrou em uma das mais cobiçadas universidades e cursou faculdade de Jornalismo. Lá dentro se sentiu bem melhor, pois percebeu que naquele ambiente acadêmico havia alta troca de cultura, ainda que não alcançassem o conhecimento que ele próprio tinha. À medida que o tempo passava, Alfredo se mostrava mais e mais um sábio entre os colegas. Eles o cercavam, o buscavam, ansiando por suas colocações inteligentes, sempre expostas com tanta certeza que não poderiam estar erradas.
Por fim o jovem se formou e logo conseguiu um emprego como crítico. Na verdade, como gostava de desafios e tinha interesses amplos, nunca permanecia muito tempo em um mesmo emprego, pois a cada momento seu foco mudava. Hora se dedicava à critica das artes plásticas, depois à crítica culinária, e então mudava para o campo da música, ou cinema, sempre estudando para poder dar opniões embasadas e fazer análises acuradas.
Desta forma, Alfredo começou mais e mais a frequentar o círculo dos intelectuais. Foi então que percebeu que não era suficiente. Apesar de todo o estudo, de uma vida imersa na alta cultura, ele via que estava sempre defasado. A cada momento se exigia mais. E eram tantas opiniões e tão contraditórias, e todas tão certas, e todas tão erradas, e tudo ao mesmo tempo, que ele não sabia o que pensar.
Percebeu como era mais fácil sua vida antes. Sempre produziu suas críticas de acordo com pontos de vista já consolidados na história. Quando queria expressar sua opinião a cerca de algo, citava algum celebre estudioso do assunto em questão. Mas agora isso não bastava, era brincadeira de criança. Tudo estava mudando.
Sempre soube escolher vinho, tendo na enologia um prazer que superava o mero consumo de álcool. Mas agora o interessante era a degustação de cerveja, e seria preciso aprender sobre isso.
Sabia tudo de música clássica e também Jazz, Blues e Rock 'n Roll. Era autoridade no que dizia respeito a artistas consagrados da MPB. Mas agora, entre os intelectuais, tudo isto era considerado consumismo e não arte, sendo relegado a segundo plano. O inteligente no momento era cultuar músicas tribais e ritualísticas. Alfredo nada sabia sobre o assunto, mas correu para aprender.
E era tanta coisa nova, e tudo se transformando tão rápido e tanta exigência para de tudo saber, que ele não pode suportar. Aconteceu um dia, depois que Alfredo encontrou alguns amigos intelectuais em uma vernissage. Ele ficou sabendo que a opinião geral agora era de que Monet era preguiçoso e apressado (e provavelmente “um vendido”, pois tudo, para os amigos, estava condenado pelo capitalismo, e ser taxado de comercial era a maior das ofensas). Haviam decidido que a arte perfeita para os tempos atuais deveria ser absolutamente efêmera. Como poemas escritos na areia da praia, ou ainda esculturas de gelo expostas no calor do Rio de Janeiro.
Alfredo ouviu a conversa. Riu e concordou. Por vezes contribuiu com comentários secos que depreciavam a arte passada. Saiu de lá ainda com o sorriso cínico no rosto. Foi para seu apartamento e se preparou. Colocou uma seleção de músicas para tocar, que incluia Beatles, Louis Armstrong e Tom Jobim. Abriu uma garrafa de vinho italiano de sua safra favorita e o degustou, enquanto folheava um livro ilustrado, sobre obras renascentistas.
Quando a musica acabou e o vinho já chegava ao final, Alfredo foi até a cozinha, pegou um cutelo e voltou para a sala. Com um golpe surpreendentemente destro depois de tanto vinho, decepou a orelha direita, espirrando sangue na parte da estante em que estavam os livros sobre expressionismo.
Em seguida jogou sua parte destacada do corpo dentro da taça de vinho, o enchendo com o resto da bebida que havia na garrafa. Como se fosse uma oferenda a um deus pagão, colocou a taça sobre uma escultura que comprara no início do ano, incentivado pelos amigos. Depois sentou-se na poltrona favorita e cortou os pulsos.
Alfredo observava a escultura (um misto de trapos e roupas de grife grudados em torno de um grande quadrado de concreto) enquanto o sangue saía de seu corpo para o caríssimo tapete persa. Aos poucos a visão começou a ficar turva. Passados alguns minutos tudo escureceu. Definitivamente.

11/11/09
21:57
Cristiane Neves