Ou de como o Mito da Caverna se torna realidade
Eu quis cantar minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
(Panis et Circense – Mutantes)
Platão tinha o mito da caverna. A pessoa depois que adquiria a luz do conhecimento não conseguia viver mais nas trevas da ignorância e tentava trazer outras pessoas para a luz. É uma idéia interessante, mas às vezes a luz é um saco. Às vezes dá vontade de arrancar os olhos como Édipo, ou pelo menos colocar um bom par de óculos escuros ou ainda retornar à escura simplicidade aconchegante de dentro da caverna. Continuar assistindo ao show de sombras projetadas na parede e se satisfazer apenas com elas, como a esmagadora maioria das pessoas.
Tanta gente é feliz vivendo em ignorância. Têm uma existência completa, não sentem falta de nada. Não podem sentir falta do que nunca tiveram, do que não conhecem. E assim os dias vão se sucedendo, e a ordem imutável das coisas permanece como sempre. Nascem, crescem, reproduzem e morrem. E a naturalidade de tudo isso é reconfortante e assustadora.
Somos homo sapiens sapiens. Espécie racional e mais inteligente da face da terra (ainda que Douglas Adams discordasse). Mas temos de discutir se a tão sábia seleção natural deu bons resultados. O que nos trouxe toda a inteligência alcançada? Vivemos mais. Realizamos milagres de ciência e tecnologia. Produzimos artes. Criamos religiões. Tudo isso para que? Como isso nos torna melhores do que cães e gatos e ornitorrincos e piolhos e lesmas e baiacus?
Não, não somos melhores que estes seres. A vida deles sim é natural, não interferem com o todo como nós fazemos. Estas criaturas estão em sintonia, interligados com o mundo. Já o homem é um animal que se afastou de seu planeta. Não faz mais parte dele, o superou, vendo-o de cima, dominando-o, o usando como se fosse descartável. Tudo produto dos “avanços” que a inteligência dos homo sapiens tornou possivel.
Em um certo momento na historia duas espécies de primatas muito semelhantes conviveram simultaneamente. Eram os neandertais e os cro-magnons. Os primeiros eram pequenos mas robustos. Tinham a inteligência limitada apesar do cérebro maior. Os cro-magnos eram mais altos e esguios. Fisicamente eram inferiores a seus “primos”, mas a inteligência os permitiu desenvolver tecnologias que os levou para além da era do gelo. Os neandertais foram extintos. Os cro-magnos continuaram evoluindo e chegaram a nós.
Pergunto-me se não teria sido melhor se os neandertais tivessem sobrevivido ao periodo glacial, e os cro-magnos perecido. Talvez estes baixinhos pré-históricos nunca desenvolvessem a inteligência que possuimos hoje e a existência seria melhor. A existência sem a noção de existência. Existência sem existencialismos, transcedentalismos, metafísicas, ou semelhantes. Seria apenas o nascer, crescer, reproduzir e morrer da forma mais simples possivel para TODOS nós.
Mas não. Em algum momento no tempo o último neandertal morreu, sem saber que consigo terminava sua espécie. Os cro-magnos superaram o passar dos tempos e nós surgimos. E pensamos e criamos e filosofamos. E ainda assim a maioria das pessoas se recusa a pensar e criar e filosofar.
Neste meio tempo, nós, poucos verdadeiros herdeiros da cruz dos cro-magnos, mergulhamos na luz exterior, mas precisamos voltar com frequência para dentro da caverna. Fora dela o espaço é amplo. As poucas pessoas que conseguem sair da caverna se perdem umas das outras, ficando dispersas no grande espaço exterior. Por isso o retorno necessário à escuridão, a fim de encontrar outras pessoas.
Pois é, aí está outro fator. O homem é um animal social por natureza, o que impôs um dilema: Ficar sozinho na luz ou acompanhado nas trevas? A opção de tentar guiar as pessoas para fora da caverna é árdua, como platão colocou, mas ainda assim esta seria a única esperança em uma existência cheia de existencialismos, transcedentalismos, metafisicas e semelhantes.
Então aqui estou eu. Deixe-me mostrar-lhes a luz. Há mais na vida do que as futilidades cotidianas em que tão facilmente mergulhamos. Deixemos de nos contentar com as meras sombras, tão insubstanciais, tão inatingíveis, tão irreais. O caminho é dificil. A saída da caverna é ingreme. É preciso subir por muito tempo, com grande esforço, mas uma vez alcançada a luz, poderemos todos nos encontrar lá fora, e ver-nos pela primeira vez como realmente somos.
Cristiane Neves
26/07/09
14:24
PS: Este texto tomou vida própria. O tema que seria tratado aqui originalmente será discutido em Platonismos Platônicos II. Eis um exemplo de como o escritor é mero instrumento das musas. “Penetra surdamente no reino das palavras, lá estão os poemas que esperam ser escritos” – Carlos Drummond de Andrade