sábado, 22 de janeiro de 2011

A triste história do desaparecimento de Ana




Foi em uma terça-feira que Ana desapareceu. Bom, na verdade, embora ela não soubesse, já havia um tempo que estava sumindo, apenas não tinha percebido. Talvez se tivesse prestado maior atenção nos caminhos que sua vida seguia isso não teria acontecido. Mas, ó, pobre Ana! Ela mesma não notou a si própria.
Ana foi a terceira criança nascida em uma família extensa, possuíndo três irmãs e três irmãos. Adalgisa era a mais velha, a mais esperta, a mais respeitada dos sete. Abelardo a seguiu, e, por ser um “menino-homem” sempre recebeu os privilégios que sua condição assegurava, quais sejam, a preferência do pai, do avô e dos demais membros masculinos da família.
Os gêmeos idênticos Anselmo e Antenor foram a quinta e a sexta criança a nascer. A semelhança que possuiam quando eram bebês se manteve por toda a vida, sendo poucas as pessoas que sabiam diferenciá-los. Como se o "efeito espelho" não fosse o bastante para a todos cativar, os gêmeos eram dados à arte performática, inventando a cada momento shows de canto, mágica, circo, mímica, entre outros, sendo, aliás, muito bons em tudo o que faziam.
Por fim nasceu Angélica, a caçula. Prematura, veio ao mundo frágil, pequena, pálida, lutando para sobreviver. Chamada carinhosamente pelos pais de “raspa do tacho”, desde sua concepção teve o amor e devoção de toda a família, sendo tais cuidados redobrados depois do nascimento difícil e do milagre de sua sobrevivência.
Angélica cresceu uma pessoa saudável. Um pouco mais baixa e pálida do que os irmãos, é verdade, e definitivamente mais magra. Resfriava-se com facilidade, mas sempre se curava com rapidez, cercada de atenções como era. Acabou se tornando a mais bela da família. As feições delicadas, os longos cabelos castanhos, a pele clara de porcelana a transformavam em uma boneca que a todos encantava.
E quanto a Ana? Não, não me esqueci dela. Ora, Leitor, neste ponto de sua história ela ainda não havia desaparecido, apesar de já se mostrar definitivamente opaca. Síndrome do filho do meio era pouco para descrever a situação de Ana.
Ana nasceu um ano depois de Abelardo e cerca de dois anos antes de Anselmo e Antenor. Seu parto veio após nove meses de gestação, sem surpresas, e, como Abelardo ainda era pequeno, ela nem mesmo trouxe consigo os prazeres de “ter novamente um bebê em casa”, como dizem muitos pais ao nascer o segundo ou terceiro filho.
Ana era simplesmente Ana. Mamava nos horários programados, chorava pouco, e, quando o fazia, era sempre acompanhada pelo potente pranto de Abelardo, abafando-a, e fazendo-a calar por fim.
A chegada dos gêmeos só fez piorar a situação. O trabalho que davam, sendo dois bebês para cuidar, alimentar, acariciar, brincar e admirar simultaneamente, dividia a atenção dos pais, avós, tios e tias.
Já com Angélica não houve sequer o ciúme fraterno, pois a própria Ana, agora com seus seis anos de idade, se viu caindo de amores pela irmã.
Na escola Ana também não chamava atenção. Aluna mediana, conversava superficialmente com colegas (nunca por iniciativa própria), participava, sem grande entusiasmo, das brincadeiras durante as aulas de educação física e, por fim, tornou-se uma pessoa tímida e apagada, mediana em tudo.
Nem alta, nem baixa; nem gorda, nem magra; cabelos castanhos médio batendo na altura dos ombros, corte reto. Em geral vestia calças jeans e camisetas neutras, com cores como branco, preto, cinza ou bege. Tornou-se operadora de telemarketing, profissão na qual ficava sentada em uma mesa, em uma sala com dezenas de outras pessoas como ela, fazendo ligações aleatórias e repetindo um texto decorado, programado em seu cérebro.
Por anos a rotina de Ana foi a mesma. Acordava às sete da manhã, tomava banho, bebia café solúvel e ia trabalhar. Na empresa não tinha amigos. Buscando a eficiência, sentava-se à sua mesa no canto da sala e punha-se logo a telefonar aos clientes em potencial.
No horário do almoço, comia em um restaurante popular, ocupando-se de ler um livro qualquer, voltando logo em seguida ao trabalho. À noite, quando chegava em casa, tomava um banho, comia um miojo e assistia televisão até dormir.
Há tempos perdera contato com a família. Acontece que Ana sempre temeu ser um estorvo para as pessoas que a cercavam, portanto não ligava para ninguém, não visitava ninguém, não queria atrapalhar ninguém.
Mas foi em uma terça-feira que Ana percebeu as consequências de seu isolamento. Ao escovar os dentes pela manhã, olhou-se no espelho e viu-se um pouco embaçada. Pensou que poderia ser do vapor do banho. Acabou de se arrumar e foi para o trabalho.
Durante uma ligação, foi buscar uma informação no computador, mas, na hora em que tentou pegar o mouse, simplesmente não havia mão. Ela sobressaltou-se, quase caindo da cadeira, e voltou a olhar para a mão. Era um engano, sua mão permanecia como sempre, na extremidade de seu membro superior direito.
Na hora do almoço a situação piorou de vez: tentou entregar o dinheiro para pagar a refeição, mas a moça do caixa recebeu o dinheiro da pessoa seguinte na fila, como se ela simplesmente não estivesse ali.
Saindo do restaurante, Ana buscou o espelho retrovisor do carro mais próximo e constatou que apesar de ainda existir, sua imagem estava vacilante, como a chama de uma vela exposta ao vento, ameaçando apagar-se.
Ana  correu para casa, fazendo questão de procurar seu próprio reflexo em cada vitrine pela qual passava. Subindo para seu apartamento, seus passos apressados na escada de madeira fizeram som o suficiente para atrair a atenção do senhorio, Seu Romão, que morava no apartamento ao lado.
Romão entrou na sala de Ana, que não havia fechado a porta. Ao ser notada por Romão, a imagem de Ana se fortaleceu por um instante, mas já era tarde demais. Romão a viu desaparecer por fim. Lágrimas silenciosas escorreram pelo rosto de Ana e então não havia mais rosto. Ana não mais existia.
Sumiu do planeta e, por consequência, sumiram seus móveis, sumiram seus registros, sumiram suas imagens nas poucas fotos e filmagens em que aparecera. Ana nunca foi.
Romão a viu sendo desmanchada da existência e sua memória também começou a apagar-se. De repente se viu questionando o que fazia no apartamento vazio. Um estalo em sua mente e foi até a própria residência, pegou um papel, pincel atômico vermelho e fita adesiva. Escreveu em letras bem destacadas “ALUGA-SE” e pregou o singelo cartaz na janela do apartamento, desejando que o futuro inquilino fosse uma pessoa calma e discreta, que não se fizesse notar no prédio familiar que administrava.

Cristiane Neves
19/12/2010 - 16:08

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