terça-feira, 8 de junho de 2010

PLATONISMOS PLATÔNICOS V


Ou Três Momentos de Reflexão



- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música. E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.

O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry

Eu não consigo compreender a facilidade com que certas pessoas se apaixonam. Tantas amigas vejo entrarem e sairem com frequência de relacionamentos, que muitas vezes me pergunto qual seria o problema comigo. São bonitas, claro, simpáticas, atraem sem dúvida pretendentes, e não é isso que me é surpreendente, mas sim a rapidez com que se vêm envolvidas com estes pretendentes. Se deixam encantar, empolgam, se mostram esperançosas, otimistas.
No que diz respeito a minha vida amorosa, talvez ela seria mais simples se eu também me envolvesse com esta facilidade. Mas assim como sou, até no que diz repeito aos homens meus gostos são complicados. E eu também sou complicada. Complexa.


Lembro-me uma noite, na época da faculdade, já quase uma década atrás, quando sentavamos bebericando vinho e ouvindo Beatles e Adriana Calcanhoto pelo violão e voz de uma amiga, artista talentosa. Naquela ocasião dividiamos as pessoas em simples e complexas. Obviamente uma divisão simplista demais, para uma humanidade tão complexa. Mas ainda assim, crendo detentoras da chave para a compreensão das pessoas, através da simples divisão em categorias, afirmavamos como os homens complexos eram exatamente aqueles que atraiam e justamente os mais complicados de se lidar.
O que qualificava alguém enquanto complexo? As pseudo-filosofias em que mergulhávamos. O pseudo-intelectualisto, intelectuóide, que se apresentava em diferentes formas. Fosse através de uma compreensão aprofundada de autores franceses como Roland Barthes (aja saco) ou Charles Baudelaire (perfeito!); ou ainda a sensibilidade musical capaz de “enxergar” como melodia o som do arranque de um carro; ou a arte de capturar a imagem ideal, calculando com perfeição a abertura do diafragma e a velocidade do obturador, determinando o tempo de exposição do filme, além do enquadramento que, dando a impressão de acaso fortúito, é fruto de profundo estudo e preparo.
Era neste meio que vivíamos imersos. Jovens sedentos por conhecimento, com sonhos e esperanças inconfessos de grandezas artísticas. Porque era isso que nos unia a todos, o amor pela arte. Futuros jornalistas, claro, mas a subjetividade era tão marcante em nossas personalidades, que muitas vezes era dificil acreditar que algum dia conseguiriamos escrever matérias isentas de pontos de vista ou digressões filosóficas.
Hoje me encontro jornalista formada. Como é inerente à minha profissão, tive contato com os mais variados tipos de pessoas, nas mais diversas situações. Encontrei pobres na tristeza de uma vida miserável e ricos na alegria de uma existência farta de prazeres. Estive com mães que perderam filhos e filhas que perderam pais. Conversei com traficantes, assassinos, policiais, vítimas, testemunhas, bandidos, herois. Vi o mundo de cabeça para baixo, as pernas grudadas ao lado do corpo, braços a sair pela barriga. Mundo deformado, que não faz sentido. Conheci também pessoas que encontravam os prazeres e alegrias nas coisas mais simples da vida. Fosse se sentir útil ao realizar um trabalho, ou o prazer em contar e recontar memória centenária, ou mesmo de poder cantar, dançar, demonstrar sua arte, ainda que público não existisse.
Tantas experiências, tantas pessoas diferentes, mostram cada vez mais a futilidade em tentar separar os homens em complexos e simples. Em verdade somos todos simples e complexos ao mesmo tempo, dependendo do momento em que nos encontramos, as situações que estamos passando. Somos todos uma mesma humanidade. Quando sofremos, sofremos. Quando estamos felizes, estamos felizes. É simples assim. Somos todos capazes de coisas maravilhosas e coisas terriveis. É complexo assim.
A verdade é que ninguém é especial, somos todos iguais. Bilhões de homens, mulheres, crianças, esperando serem cativados. Pois, como explica a Raposa de Saint-Exupéry, apenas depois de sermos cativados e de cativarmos nos tornamos diferentes para aquela pessoa cativadora ou cativa. Antes disso, somos apenas mais uma rosa como todas as outras, em um jardim infinito, sem nada que nos destaque.

E então, aqui me tenho: uma pessoa que dificilmente se deixa cativar. Raposa arisca, teme que todos os homens não passem de caçadores. Por muito tempo permaneceu selvagem, solta na natureza, e assim continua, sem Pequeno Príncipe que a cative.
Mas um dia um Príncipe há de chegar, e, como na historia, esta Raposa também se verá, aos poucos, cativada. Mas o Príncipe a deixará, pois o roteiro não muda. Para a pobre Raposa restará apenas o prazer em observar os campos de trigo e relembrar o amigo perdido. Entre lágrimas ainda afirmará que saiu no lucro, pois ao menos agora os campos de trigo têm um valor muito, muito maior em seu coração.

Cristiane Neves

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