terça-feira, 6 de abril de 2010

O intelectual

 


A mãe de Alfredo sempre afirmou que ele já nasceu inteligente. Dizia ela que quando estava grávida não teve desejo de comer alimentos estranhos, mas devorou livros, contribuindo desta forma para a inteligência de seu filho. “Foram lições intrauterinas” – brincava a orgulhosa genitora.
Já o pai discordava. Ele afirmava que o intelecto superior de seu filho se devia à música clássica. Durante os meses de gestação, ele colocava Mozart para tocar, as caixas de som apontadas para a barriga inflada da esposa.
Não eram apenas os familiares que disputavam o crédito para o prodígio de Alfredo. A madrinha, uma amiga da família, jurava de pés juntos que os brinquedos educativos, presenteados ao pequeno desde seu nascimento, permitiram que ele desenvolvesse mais seus neurônios. Já sua primeira professoa, Tia Ana, alegava que o incentivo ao estudo em sua sala de aula é que trouxe o gosto pela leitura ao aluno.
Independente de quem tenha dado o pontapé inicial para o desenvolvimento mental superior de Alfredo, o fato é que desde muito jovem já demonstrava uma visão diferente de mundo.
Aos três anos de idade já sabia ler e fazer contas simples. A precocidade de seu aprendizado continuou ao longo da idade escolar. Apesar disso não pulou nenhuma etapa, pois fazia questão de passar por todas as séries, mesmo diante da insistência de alguns professores em adiantá-lo pelo menos um ou dois anos.
Curioso que, apesar de compreender bem as ciências, desde cedo ficou claro que Alfredo se interessava muito mais pelas artes. E com todos a sua volta o estimulando, o pequeno gênio achou que era normal uma criança de 7 anos saber quem eram Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Alexandre Dumas e Manoel Bandeira.
As diferenças entre ele e seus colegas de classe se notavam no dia a dia. Enquanto os amigos folheavam revistas em quadrinhos, vibrando com as cenas de batalha, Alfredo não conseguia deixar de notar o erro na projeção da luz e sombra, a desproporcionalidade entre a cintura das personagens femininas e  suas cabeças, ou ainda problemas de continuidade de um quadrinho a outro. Certo dia vendo nas mãoes de um colega uma Graphic Novel cuja arte lhe agradara, comparou com As Três Banhistas, de Cézanne, e mais uma vez se admirou que os amigos não conhecessem o famoso pintor francês.
Foi desta forma que desde cedo Alfredo percebeu que era peculiar e aprendeu a se controlar diante das pessoas. O tempo passou, ele cresceu, entrou em uma das mais cobiçadas universidades e cursou faculdade de Jornalismo. Lá dentro se sentiu bem melhor, pois percebeu que naquele ambiente acadêmico havia alta troca de cultura, ainda que não alcançassem o conhecimento que ele próprio tinha. À medida que o tempo passava, Alfredo se mostrava mais e mais um sábio entre os colegas. Eles o cercavam, o buscavam, ansiando por suas colocações inteligentes, sempre expostas com tanta certeza que não poderiam estar erradas.
Por fim o jovem se formou e logo conseguiu um emprego como crítico. Na verdade, como gostava de desafios e tinha interesses amplos, nunca permanecia muito tempo em um mesmo emprego, pois a cada momento seu foco mudava. Hora se dedicava à critica das artes plásticas, depois à crítica culinária, e então mudava para o campo da música, ou cinema, sempre estudando para poder dar opniões embasadas e fazer análises acuradas.
Desta forma, Alfredo começou mais e mais a frequentar o círculo dos intelectuais. Foi então que percebeu que não era suficiente. Apesar de todo o estudo, de uma vida imersa na alta cultura, ele via que estava sempre defasado. A cada momento se exigia mais. E eram tantas opiniões e tão contraditórias, e todas tão certas, e todas tão erradas, e tudo ao mesmo tempo, que ele não sabia o que pensar.
Percebeu como era mais fácil sua vida antes. Sempre produziu suas críticas de acordo com pontos de vista já consolidados na história. Quando queria expressar sua opinião a cerca de algo, citava algum celebre estudioso do assunto em questão. Mas agora isso não bastava, era brincadeira de criança. Tudo estava mudando.
Sempre soube escolher vinho, tendo na enologia um prazer que superava o mero consumo de álcool. Mas agora o interessante era a degustação de cerveja, e seria preciso aprender sobre isso.
Sabia tudo de música clássica e também Jazz, Blues e Rock 'n Roll. Era autoridade no que dizia respeito a artistas consagrados da MPB. Mas agora, entre os intelectuais, tudo isto era considerado consumismo e não arte, sendo relegado a segundo plano. O inteligente no momento era cultuar músicas tribais e ritualísticas. Alfredo nada sabia sobre o assunto, mas correu para aprender.
E era tanta coisa nova, e tudo se transformando tão rápido e tanta exigência para de tudo saber, que ele não pode suportar. Aconteceu um dia, depois que Alfredo encontrou alguns amigos intelectuais em uma vernissage. Ele ficou sabendo que a opinião geral agora era de que Monet era preguiçoso e apressado (e provavelmente “um vendido”, pois tudo, para os amigos, estava condenado pelo capitalismo, e ser taxado de comercial era a maior das ofensas). Haviam decidido que a arte perfeita para os tempos atuais deveria ser absolutamente efêmera. Como poemas escritos na areia da praia, ou ainda esculturas de gelo expostas no calor do Rio de Janeiro.
Alfredo ouviu a conversa. Riu e concordou. Por vezes contribuiu com comentários secos que depreciavam a arte passada. Saiu de lá ainda com o sorriso cínico no rosto. Foi para seu apartamento e se preparou. Colocou uma seleção de músicas para tocar, que incluia Beatles, Louis Armstrong e Tom Jobim. Abriu uma garrafa de vinho italiano de sua safra favorita e o degustou, enquanto folheava um livro ilustrado, sobre obras renascentistas.
Quando a musica acabou e o vinho já chegava ao final, Alfredo foi até a cozinha, pegou um cutelo e voltou para a sala. Com um golpe surpreendentemente destro depois de tanto vinho, decepou a orelha direita, espirrando sangue na parte da estante em que estavam os livros sobre expressionismo.
Em seguida jogou sua parte destacada do corpo dentro da taça de vinho, o enchendo com o resto da bebida que havia na garrafa. Como se fosse uma oferenda a um deus pagão, colocou a taça sobre uma escultura que comprara no início do ano, incentivado pelos amigos. Depois sentou-se na poltrona favorita e cortou os pulsos.
Alfredo observava a escultura (um misto de trapos e roupas de grife grudados em torno de um grande quadrado de concreto) enquanto o sangue saía de seu corpo para o caríssimo tapete persa. Aos poucos a visão começou a ficar turva. Passados alguns minutos tudo escureceu. Definitivamente.

11/11/09
21:57
Cristiane Neves

Nenhum comentário:

Postar um comentário